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29.10.15

O meu texto no lançamento da obra de Fernando Pessoa, "Minha Mulher A Solidão"


INDICE DO CORTA E COLA

Em primeiro lugar gostaria de agradecer o convite do Manuel, estar na companhia da Eugénia e do Ilídio e a generosidade dos Pedros (Marta Santos e Norton), nunca me esquecendo da Sara.

Eu nunca dormi aqui. Mas as palavras do poeta dormiram na minha cama. Sorrateiramente dormimos juntos.

Conheci e conheço mal casadas e virgens que não amam a quem foram destinadas.

Estrangeiras, louras e homens, alguns imberbes outros não e morenas com a verdade sempre a martelar-me:
Tu é que não me amas.

Nunca te quis só para sonho, mas nunca me digas que me queres, que a mentira tem perna curta e tu nunca viste as minhas.

1920, 1, 19, 25, números de Março
5 do mês 4, 28 de Maio, 4 de Junho, 29 de Novembro,
e nove anos depois 29 de Setembro. São os números de Ophélia, coisa parca para tamanho encantamento.

Depois cai-se na vida, e a vida a engolir o que deveria sair, agir sempre para dentro até rebentar, comer a carta e o rascunho já que não te posso trincar o corpo, tudo transparente só para ti, opaco para mim, a dizer da mentira consumada, do desejo inacabado e do amor vexado.
Seduzir de olhos fechados, mãos atadas cabeça quente e corpo gelado. (dizem)

Dormiste o tempo todo comigo, mas não foi aqui, não sei do lugar.
Possivelmente os génios desprezam a carne.
Mas conta a lenda que...


Muito obrigada
Ana Vidigal

27.10.2015

E o texto do Manuel S. Fonseca (ler AQUI)
E o texto do Pedro Norton (ler AQUI)
E o texto da Eugénia de Vasconcellos (ler AQUI)

25.3.14

Falta um dia | "Olho, quase todos os dias para (...) | PF

Olho, quase todos os dias, para uma obra da Ana Vidigal. É um enigma, como devem ser todas as obras. Fala comigo. Para Julia Kristeva, "hoje em dia, nada ou quase nada, se faz sem fala, e é necessário saber apesar de tudo se essa coisa que fala quando eu falo e que me implica totalmente em cada som que enuncio, em cada palavra que escrevo, em cada signo que faço, se essa coisa é realmente eu, ou um outro que existe em mim, ou ainda um não sei quê de exterior a mim mesmo que se exprime através da minha boca em virtude de qualquer processo ainda inexplicado". Ana Vidigal é das artistas que mais tem trabalhado com esse universo sígnico, com os vestígios resultantes da tarefa de viver, revelando paradoxos e polissemias, repensando, à sua maneira muito pessoal, uma certa ideia de pintura em relação muito próxima com a questão da materialidade da linguagem. Na próxima Quarta-Feira, a Ana inaugura nova exposição individual na Galeria Andrea Baginski C, às 22h. Mas não se esqueçam que, como bem refere J. Kristeva, "diante de uma pintura, os fantasmas desaparecem, a fala cala-se". Não vou perder!! E leiam este texto muito fixe escrito pela Susana Pomba:

Ana Vidigal
“Em Primeiro Lugar o Fim (rigorosamente pessoal)”
Baginski Galeria/Projectos
De 26 de Março a 24 de Maio de 2014


O dia começa com oatelier arrumado.

Os títulos das obras de Ana Vidigal são a última coisa a serescolhida e “colocada”. Ou já estão lá, à mão de semear, nas próprias colagensou então a escolha é feita com coisas que caem nas mãos da artista (dosarquivos, recortes e cadernos que acumula). Esses títulos ou se relacionam eassentam que nem uma luva (nas mãos), ou são colocados por pura oposição eactividade humorística.
Por isso podemos, “Em Primeiro Lugar” começar por enunciareste “Fim”: “Rei Pequenino”, “A Deliciosa Banalidade do Quotidiano”, “Monet (nenúfares)”, “The Perversions of Quiet Girls”, “SortidoFino”, “A Vida Dói”, “O Medo Incentiva a Coragem” , “Marisol” e “Pandora”.Agora, a escolha é de cada um, e sem medos, “rigorosamente pessoal”.

A roupa do pintor que trabalha. Aqui a palavra “pintor” nãoé substantivo masculino, quer-se sem género. E coloca-se assim como provocação.Como já não existem poetisas mas poetas, também não existe o feminino dapalavra pintor. Sempre gostei mais de dizer obrigado do que obrigada. Obrigadaa nada. Sempre gostei mais de dizer artista.Rei Pequenino.  

Enquanto vestes a “farda” pela manhã, lembras-te do lugarcomum que é a roupa de trabalho do artista. Mas dizes, não se ganha para tirara cola que se acumula nas calças de ganga. Por isso ela existe. A roupa detrabalho é aquela que não se leva à rua, uma farda que não sai de casa. Mas trabalhastambém com a roupa que escolhes de manhã para sair, uma escolha feita por entreas peças que se retirou e se arrumou à noite antes de dormir e outras novas elimpas que estão no armário. Cada peça de roupa tem o seu galho. E depois deixasa casa arrumada porque vais sair porta fora para trabalhar. O trabalho sujo e otrabalho limpo. A Deliciosa Banalidade doQuotidiano.


Ao longo do diatrabalha-se muito.

Voltaste a casa com elipses amarelas e fluorescentes.Aquelas para escrever preços e promoções. Os nenúfares são rodelas autocolantescolocadas estrategicamente por cima e a tapar sem misericórdia um antigo posterde um filme bem conhecido de Stanley Kubrick, “2001. Odisseia no Espaço”. Aquiaparece de repente um exercício quase matemático: um ícone másculo mais outroícone másculo, não resulta em ícone másculo nenhum. É o fim da acção de atelierde Ana Vidigal ao retirar os papéis por detrás dos autocolantes e calcar,apagando de forma precisa o poster clássico tornando-o um wallpaper, ou umbackground, ou um desktop, ou uma paisagem longínqua. Kubrick como paisagemsecundária, Monet como elemento decorativo. A soma das partes feita no atelier quandosai para a rua é muito maior. Ponto. Monet(nenúfares).

Viras telas de 2 metros por 2 metros com os polegares dasduas mãos. Depois com as mãos inteiras e com a ajuda do que estiver por perto.Contingências. Continua-se. Raramente as pessoas te vêem a trabalhar. Colocasplásticos que guardam o chão e retiras as tampas aos potes de cola. Cortas afita cola castanha com uma tesoura afiada. Não há música. Os barulhosdistraem-te, se forem bons ou maus. Passeias entre o atelier, a biblioteca e o arquivo,abres caixas e gavetas. Estas já não cheiram a alfazema como as da tua avó. Vaisem direcção à cozinha, passando pela sala. Tu tens o atelier em casa, vivesaqui, tudo se passa aqui. The Perversionsof Quiet Girls.  


De repente aparece umproblema

Lavar a loiça e o trabalho intelectual não são a mesma coisa.Discordo. São o mesmo. Quando lavas a loiça resolves problemas importantes. Nãodeixas de pensar. O prazer que tens nessas actividades, iluminam as outras. Eu tambémfaço isso, às vezes resolvo problemas em estado de sonolência. E isso obriga-mea levantar todos os dias da cama.

O trabalho da Ana Vidigal sente-se sempre como o sumário primordialda vida que tínhamos, há umas boas décadas atrás, das memórias totalmente entrelaçadasentre vida doméstica e vida pública, pessoal e colectiva, vida de família evida como elemento activo dentro de um país. De livros, revistas e discosperdidos e rasgados que contêm traços do que agora podemos finalmente pensar davida que foi e da que estamos a ter agora. Mas desagrada-me esta separação feitaem dualidade de pares de palavras e pergunto, e tenho vindo a perguntar sempre pelomeio deste texto (ao mesmo tempo inteiro e desfeito em bocados), se não é tudo apenasum. Sortido Fino.  

Não sabes o que hás-de fazer com um trabalho em curso, tensmedo de estragar tudo, está tudo desarrumado ao pé de ti e vais dar uma volta. Comprazer, podas pequenas partes das plantas junto à janela, lavas a tal loiça. A Vida Dói.

Um desenho de uma tal Mena é encontrado, dobrado e agrafado aopapel de parede cor de rosa. A imagem, um desenho humorístico, de trêsraparigas que correm para o lugar mais alto de um pódio aparentemente por causade um rato, é exposto e singularizado para que possa ser repensado. Nãofiquemos pela rama. Elas chegaram lá, se entretanto se assustaram com umacontecimento banal, é apenas o percurso natural, tragédias que se encontrampelo caminho de qualquer pessoa. O MedoIncentiva a Coragem.


Faz-se uma escolha econtinua-se

Uma narrativa criada por Ana Vidigal, com ordem numérica, e escritaa lápis sobre papel de parede dobrado, para receber uma série de fotografias antigasde cinema da actriz e cantora espanhola Marisol, rapariga loira de olhos azuis.As semelhanças e referências seja ao que for desenrolam-se à nossa frente -façam favor de se projectarem e de perceber a história que quiserem. Totalliberdade, nenhum julgamento. De espingarda na mão, como galã da matiné, comouma grande sonsa ou como quem diz “eu se fosse a ti piava fininho”. Afinal, somosconvidados logo no início da história. Hipóteses múltiplas.Marisol

Estas obras que se fazem de “retalhos”, são bocados de ofertas,de recolhas da artista, pedaços que cataloga, que arruma em caixas com frasesinformativas escritas na tampa que alertam para o seu interior, e que podem ounão ser abertas num futuro próximo. A escolha é apenas de uma pessoa. A escolhapode ser a de restituir algum do interior dessas caixas a outras caixas, partesintegrantes de um extenso arquivo vertical com paredes feitas de páginas derevistas de arte (Art Forum). Pandora


Ao fim do diavolta-se a arrumar tudo outra vez.

Finalmente, riscas os bocados que não te interessam na contracapa e índice da Reader’s Digest, seleccionando desta maneira o título daexposição. No interior encontras outra frase que vai existir entre parêntesis,colada à que foi encontrada primeiro.

Trabalhar no atelier, despir a farda, arrumar, lavar aloiça, podar as plantas, mudar a configuração dos quadros que tens na parede, olharpara os vizinhos na rua, dispor os alimentos no prato. E “Quando a morte vier,que me encontre a trabalhar”, já dizia o Ovídeo.  



Susana Pomba

14.1.14

A Viagem da Sala 53


A “viagem da sala 53” é uma exposição da programação de Francisco Fino Art Projects que vai ser apresentada na Baginski Galeria/Projectos com curadoria de João Silvério. A exposição é composta por cinco artistas: Ana Vidigal (PT, 1960), Igor Jesus (PT, 1989), Karlos Gil (ES, 1984), Nuno Nunes Ferreira (PT, 1976) e Vasco Barata (PT,1974).
O título da exposição enuncia uma ideia de viagem, de transitoriedade no tempo, resgatando o arquivo do ponto de vista dos procedimentos do trabalho dos artistas que integram a exposição. A memória como correlato temporal que se presentifica nas obras expostas conduz-nos ao seu arquivo, lato sensu, e ao seu imaginário, um campo subjectivo e profícuo da intimidade cujas afecções podem denunciar formas distintas de (des)arrumar as nossas ideias e o nosso olhar sobre relações históricas por vezes aparentemente anacrónicas.
A relação próxima, quase orgânica, com os registos, com um desenho, com as imagens dos lugares sem nome, expurgadas de qualquer referência contextual. Ou os objectos distantes da sua anterior função e recontextualizados no processo criativo que cada um dos autores trabalhou, como um projecto que se reconfigura no tempo, agregando e inscrevendo outros lugares e outras referências. É neste sentido que a ideia subjacente à palavra “viagem” coloca o espectador no interior desta sala, identificada como a sala 53 da galeria, como se esta fosse uma cápsula ou uma antecâmara dos diversos itinerários que cada obra sinaliza.
O projecto expositivo é acompanhado de uma publicação que, não pretendendo reproduzir as obras expostas, introduz o leitor num percurso de imagens e de referências que os artistas participantes disponibilizaram a partir do seu arquivo. A publicação, como uma sebenta, contém ainda um prólogo de anotações sobre a exposição e as obras dos autores.

João Silvério



6.1.14

(7 anos, depois) | morreu o Nelson Ned

“As Desgraças da vida, são a alegria da arte

Take 1
Obladi obladá, era a época do gelado Rajá.
Nasci no nº15 da Avenida António Augusto de Aguiar a 6 de Agosto de 1960 e a coisa mais radical que fiz nessa década foi receber o Prix de Turbulence no Liceu Francês Charles Lepierre, ainda as Amoreiras eram mesmo para apanhar as folhas que alimentavam aquelas lagartas que tínhamos em caixas de sapatos e que eram os únicos animais que a minha mãe permitia que coabitassem connosco. Os bichos-da-seda.
Já nessa altura dizia que queria ser pintora talvez por ter sempre à mão canetas de feltro, lápis de cor, de cera e lapiseiras (uma infância Caran D’Ache…).
Nunca gostei de aguarelas e tinha queda para os guaches que espremia com especial gozo.
Apaixonei-me por uma tesoura mais ou menos por volta de 1967 e até hoje ela tem sido a minha mais fiel companheira (só a traí em 1998 quando resolvi fazer uma exposição sem uma única colagem. - não gostei da infidelidade.) Lembro-me de recortar a Jackie Kennedy das páginas do Paris Match e acho que foram essas as minhas primeiras colagens
Para ver se ganhava algum prémio de jeito ou domar a minha indisciplina passei a frequentar o colégio ao lado, o Externato do Parque das Irmãs Doroteias onde passei então a década de 70 a fazer desenhos tipo “Amor é” e naturezas mortas psicadélicas, influência do grafismo da época e da leitura voraz da revista “Schoner Wohnen” (o meu período Rotring…)
No dia 25 de Abril de 1974 não percebi muito bem o que estava a acontecer. Mas calculei que a coisa não fosse má, pois a televisão mostrava muita gente bem disposta nas ruas e eu sempre gostei de festas.
Mas não saí de casa, vi a revolução pela televisão a preto e branco, de robe aos quadrados escoceses, um pouco estupefacta com tanta gente sorridente, “Chaimites” e G3 com cravos.
O meu percurso político também é um pouco peculiar, venho da direita para a esquerda, o que não é de estranhar, pois nenhuma adolescente desinformada como eu era, gosta de um dia para o outro perder privilégios.
Mas rapidamente percebi que me tinha saído a “Sorte Grande” e li tudo o que me apareceu à frente.
Passei da “Colecção Azul” às “Novas Cartas Portuguesas” enquanto o “diabo esfregou um olho.”
Tão depressa como passei dos rios de Angola à Revolução Cubana cheguei aos anos 80.
Entrei na ESBAL em Janeiro desse mesmo ano e percebi que tinha começado a minha vida de adulta.

Take 2
Obladi obladá já não há gelados Rajá.
“Travelling”,” Peeping Tom”, “Mary Smith born in 1989”, “Notorius”, “Tous les chiens de ma vie”, “Phoenix, Arizona”, “O telefone acordou-a às 5.30 da manhã”, “Coats and Clark”, “Casual”, “Besoin d’une jolie fille pour mercredi”, “Insípida”, “Os domingos passaram a ser dias suportáveis”, “Este ano o tempo é que se atrasara, mas eles eram pontuais”, “Elisabeth Alione teve um estremecimento”, “Trois chiens rouges”, “Imbecil”, “ La vengence d’ une blonde”, “Bad day at Black Rock/ Vera Cruz (sessão dupla) ”, “Estrada 175 Norte”, “Cianeto”, “She was a visitor”, “Quebec”, “Peneirenta”, “Pick my box”, “Entre mim e os meus botões”,”Sonso”, “Finalmente”, “ Um, dois, três macaquinho do chinês”, “Aborrecida”, “Bavarder”, Mr and Mrs Donuts”, “Glum”,
“Sem título – colagem”, ”Top hat”, “ Branca de Neve I”, “Branca de Neve II”, “Branca de Neve III”, “Inconfidência”, “Orgulho e preconceito”, “Pourquoi faire simple, quand on peut faire compliqué?”, “Austrália”, “ To have or have not”, “ December the coolest Month”, “I’ve never expected you to come”, “A glimpse”, “Still”, “Colecção Cinema”, “By friends and enemies alike”, “Beija-me idiota”, “Ménage à trois”, “Woman’s work is never done”, “Ao lado de uma menina limpa há sempre uma menina suja”, “Tudo isto e o céu também”, “Madalenas”,”A minha desordem é o meu capricho”, Inaparente”, “Para antes do esquecimento”, “Enquanto Tarzan dormia”, “Super Pop”, “ A maravilhosa tendência para o desastre”,”Janela indiscreta”, “Unforgiven”, “She”, “Ouça-a”, “Acabo de cair da bicicleta”, “Sou uma pessoa pouco sociável”, “Uma rapariga turbulenta”, “Mas”, “Coração Burro”, “El dolor de Lolita”, “Tornei-me feminista para não ser masoquista”,”Acredito ter mãos, acredito ter boca, quando só tenho patas e focinho”, “É – me”,” Agora és minha”, “Não pretendo respostas inteligentes para tudo”, “Nada a fazer”, “Nada a dizer”, “Nada a acrescentar”.

Pinto há 26 anos, a última pintura que fiz chama-se, “ O treino da generosidade”



Ana Vidigal
Dezembro 2007

27.3.12

Art me up | (um texto de Eugénia Vasconcellos)

LOCK ME SAFE-SET ME FREE

Da Casa dos Segre­dos, de Ana Vidi­gal, já li que era uma escul­tura, uma ins­ta­la­ção e ambas. Deixo isso para quem disse. Mas a afir­ma­ção da cons­tru­ção atra­vés da des­cons­tru­ção de um espaço pelo rea­li­nha­mento de caci­fos for­ra­dos, acima, de espe­lho, da mani­pu­la­ção da luz e da cir­cu­la­ção, não chega para des­cre­ver o que encon­tra­mos quando entra­mos no átrio do IST. A ser um con­ceito tan­gí­vel, da ordem do da escul­tura, do da ins­ta­la­ção, a Casa dos Segre­dos é um verbo no gerún­dio, o único tempo que serve à fénix, ao que prin­ci­pia e acaba para prin­ci­piar, ao con­tí­nuo humano – ao labirinto.

A Casa dos Segre­dos é a nar­ra­ção de um pro­cesso, nar­ra­ção feita com os recur­sos dis­po­ní­veis no local — uma eco­no­mia razoá­vel, sen­sata e, pre­do­mi­nan­te­mente, domés­tica. Nada que seja inco­mum nos tra­ba­lhos de Ana Vidi­gal. Ou melhor, é um traço dis­tin­tivo neles — não há equí­vo­cos nesta trans­for­ma­ção que actua fora como den­tro: de um casaco se faz uma saia; das sobras de uma refei­ção outra; de mil livros lidos se escreve um iné­dito; de uma foto­no­vela faz-se uma situ­a­ção numa tela. Da casa que se atra­vessa, faz-se o mundo por onde se cami­nha: labi­rinto é o pro­cesso de trans­for­ma­ção de uma coisa num outro si mesmo, um cen­tro de ser que se expande

Tal­vez este seja o mais tra­di­ci­o­nal­mente femi­nino tra­ba­lho de Ana Vidi­gal – o que não deixa de ser inte­res­sante como recor­rên­cia nos ter­mos inter­pre­ta­ti­vos do lugar da mulher, do con­flito e da paci­fi­ca­ção des­sas posi­ções. Tal­vez por isso esteja osten­si­va­mente no átrio de um mundo tra­di­ci­o­nal­mente mas­cu­lino, o IST. Logo, e para­do­xal­mente, é femi­nista. Não por con­tes­ta­ção, por con­fir­ma­ção. Esta­mos aqui. Outro traço dis­tin­tivo: a pre­sença da dua­li­dade, feminino-masculino. Adi­ante mais. E a inter­ven­ção, deve­ria dizer a femi­ni­za­ção do espaço, radi­cal: a Casa dos Segre­dos é, antes de ser outra coisa, uma caixa de cai­xas, a maior cuja tampa é a cla­ra­bóia, luz de fora fil­trada para den­tro, como no tempo da infân­cia de Ana Vidi­gal, onde se fez pes­soa, quando era atra­vés do homem fora que o mundo che­gava à mulher den­tro, casa-caixa-contentor de si e con­ti­nente de outros, um mundo e outro mundo. As pare­des ergui­das tais mura­lha, caixas-cacifos, modo ver­ti­cal de actuar, assump­ção do modo mas­cu­lino pelo femi­nino, ir ao mundo fora, levando o mundo de den­tro. Um mundo e outro mundo num só mundo, uma das pare­des caiu, den­tro prolonga-se para fora, e fora cresce para den­tro, o con­ti­nente somos eu e tu, à vez. Den­tro dela, a casa, nome­ada na parede pelo lado externo, qual villa onde se habite: Casa dos Segre­dos. E este é o seu maior segredo, à vista de todos, o segredo do movi­mento dos tem­pos no tempo: este mundo mas­cu­lino já é femi­nino, esta­mos aqui, diz a voz de uma mulher. O segredo é possível?

A Casa dos Segre­dos terá sido um rea­lity show à seme­lhança de um Big Brother — o jogo de sedu­ção de Godard quando pisca o olho ao público. A parede caiu. Da coin­ci­dên­cia de pro­grama e inter­ven­ção, entra-se na evi­dên­cia: o espaço pri­vado no espaço público. As tais mais dua­li­da­des acima pro­me­ti­das. Ou se pre­fe­rir­mos, o espaço do voyeur no lugar do exi­bi­ci­o­nista: faço para que vejas, mimé­tica prous­ti­ana, vejo para que faças. Outro traço dis­tin­tivo que aqui recorre: humor, pro­vo­ca­ção, mise-en-scéne, espe­lho de nós, cari­ca­tura ence­nada. Mas existe ainda a pri­va­ci­dade? O lugar íntimo no tempo do chip, do gps, do FB, quando ser é comu­ni­car que se é? A parede caiu. E, não de some­nos, há tam­bém o lugar do objecto e do atri­buto, sin­to­mas: sinais iden­ti­tá­rios do ser e do fazer, pro­fis­são, crença, hobby, casado, sol­teiro, rico, triste, apli­cado, soli­tá­rio, popu­lar, fechado a segredo cade­ado, a segredo soli­tá­rio por entre a gente, exposto para ser visto, e exposto até à invi­si­bi­li­dade: lock me safe-set me free.

Mais outro traço: a repe­ti­ção e a super-abundância, no caso a da mesma ideia em for­mas iguais e dife­ren­tes para mais com­ple­ta­mente a explo­rar. Uma caixa den­tro de outra caixa den­tro de outra caixa. Cacifo, cacifo, cacifo, cacifo, cacifo. Acima e abaixo caci­fos, cai­xas sobre cai­xas. Luz de cla­ra­bóia sobre os espe­lhos e devol­vida para fora, de fora para den­tro, de den­tro para fora, outra vez, de outra maneira. Esta­mos aqui.

E, final­mente: buraco no tronco da árvore de Alice, caindo, entrando no labi­rinto, se tran­sita do público-privado, aberto-fechado, para o eu persona-eu comigo, e um fio inteiro para me encon­tra­res, a mim Ari­adne, não à saída, não ao outro ao meu lado, igual a mim pelo lado de fora, a mim, indi­ví­duo único, para me encon­trar a mim mesmo, e para ser, indi­vi­du­a­ção, ser em cami­nho, cami­nhante — em rela­ção, em situ­a­ção, no tempo. Outro traço dis­tin­tivo: o diá­logo, a dinâ­mica pes­so­a­lís­sima de um pro­cesso cri­a­tivo, não a dinâ­mica para uma resolução.

É pelos tra­ços dis­tin­ti­vos, que bom, por­que com­põem uma espe­cí­fica lin­gua­gem assi­nada, que pode­mos dizer: é da Ana Vidigal.

* soli­tá­rio por entre a gente…, de Camões in O AMOR É FOGO QUE ARDE SEM SE VER

20.3.12

(coisas do) pastoreio

Equânimo café da manhã

Que faríamos nós de nossa vida tão pura?

C.L.
Adoro muesli pela manhã.
Como explicar a inesperada
alegria do coco?
doçura tão súbita que atravessa
toda a dormência da língua & etc.

Detesto a aparição do verme
na fruta de cada dia.
Irrompe feroz o anúncio da podridão
Ri e ri e rindo sacode
toda a dormência da superfície.

Agradeço estas duas surpresas
& a diferença entre elas

22.2.12

"Le monde sans vous"

Mais tout vivant basculant dans l’inconnu de la mort ne devient-il pas un enfant ? Non pas qu'il le devienne, la mort n'est pas un retour à un état antérieur, mais, comme le nouveau-né passe d'un monde clos à un espace immensément ouvert, le nouveau-mort passe d'un monde limité, aussi vaste et intense soit-il, à un infini ; il y a expulsion hors d'une intimité vers un inconnu radical. Et l'un et l'autre sont hors langage, infans, privés de parole. Le nouveau-né, encore si démuni, on peut le prendre dans ses bras, on le lave, le nourrit, on le berce, on lui parle doucement, on le caresse; on l’accueille en notre monde qui d'emblée se fait sien, on reçoit un nouveau vivant parmi nous, les vivants de tous âges. Il est notre contemporain, minuscule et porteur de mille possibles. Il est une promesse, une histoire inédite qui surgit, dont on ignore encore tout et qui d'entrée de jeu éveille notre intérêt, et engage aussi notre responsabilité. Le nouveau-mort, lui, se trouve d'un coup et absolument démuni. Sitôt inhumé ou incinéré, son corps nous échappe à jamais. Et le lien de contemporanéité se brise irrévocablement. Son histoire est parachevée, plus une virgule, plus un iota ne pourront y être ajoutés ou retranchés. Un vivant s'en va, et on ne sait pas où. Nulle part, quelque part ? Va-t-il se dissoudre dans le néant ou s'aventure-t-il en un ailleurs insoupçonné ? Est-il voué à revenir sur cette terre au terme d'un jugement karmique ? Certains ont un avis tranché sur ces questions, les athées et les croyants déclarés, et parmi ces derniers, la représentation de l’Ailleurs où vont les défunts varie selon la religion où leur foi s'enracine. Beaucoup ont un avis flottant et une imagination fantasque - qui n'en est pas moins bien piètre souvent, et finalement fort peu imaginative. Plus de présence physique, plus de paroles, plus de partage, et une mise à l’arrêt du savoir. Comment le souci pour les nouveau-morts peut-il dans ces conditions se traduire en actes, se manifester en soins à leur intention ?

Sylvie Germain in Le monde sans vous p.125-126
© Éditions Albin Michel, 2011
(do blogue da Vera)

1.2.12

Ana Vidigal | Eugénia Vasconcellos

Com quem fala Ana Vidi­gal nas notas quase de rodapé das suas telas, letras uma a uma ris­ca­das por den­tro da régua, a caneta, a bis­turi quando cor­tam, e quando colam, a quê?, fir­mes e cer­tas como um passo, mar­cham, a quem grita enor­mes letras ao cen­tro do cen­tro de gra­vi­dade alte­rado pelo peso pin­tado das pala­vras, para quem a som­bra que assoma em voz de minús­cu­las, qual lápis fino, quase fumo, num título, às vezes penso com quem anda­rás a dor­mir. Fala com ela mesma. Con­sigo. Comigo. Fala com todos os que alguma vez se per­gun­ta­ram: com quem anda­rás a dor­mir. E com aquele tu de carne ou fic­ção que dorme saberá deus com que con­creto ou incon­creto quem – ainda que a auto­bi­o­gra­fia, se a hou­vesse, não fosse mais do que o ponto de par­tida, mito­lo­gia pes­soal, pois à che­gada, na peça que criou, esta­mos todos. A Ana Vidi­gal tem a Ana Vidi­gal por inter­lo­cu­tor. E tem por inter­lo­cu­to­res que não lhe falam, nós con­nosco. Mais: ela con­nosco. E de some­nos: eu contigo.

Sim. Se uma pes­soa fosse um número, a Ana Vidi­gal seria um 2, nem que fosse o do eu ao espe­lho. Quer dizer, ela ao espe­lho. Nós em diá­logo nem que seja monó­logo. Inte­gra­dor? Menina Limpa Menina Suja na anto­lo­gia onde mais se viu o fun­da­men­tal rodo­pio do tempo, tempo maiús­culo, tempo capi­tal. Tempo: o ontem é o hoje pro­ces­sado em busca do ontem? Que ontem? Que hoje? Ou será em busca do futuro? Iro­nia colo­rida a kitsch, poe­sia dese­nhada a pop? A pin­tura tam­bém tem humor – e humores

O ontem da casa, lugar da famí­lia, lugar de mulher, o do homem é o tra­ba­lho, ontem do quê e de quem, afi­nal? Quando, como come­ça­mos a ser, onde? Ontem, sem­pre ontem, com os nos­sos pais, na famí­lia, na casa. As casi­nhas. O que é um pre­sé­pio, quem vive no pre­sé­pio das casi­nhas de pre­sé­pio? A repre­sen­ta­ção do espaço íntimo, é um espaço social, no rodo­pio do tempo. É. E a mãe, o pai, são o homem e a mulher. São. E a casa e o ate­lier, dois mun­dos. 2. E assim, do eu para o tu que somos nós, onde o pas­sado infan­til con­verge com o adulto do pre­sente que o aborda, a Ana Vidi­gal tran­sita do indi­ví­duo que é para a artista que é – casa e ate­lier. E per­gun­tando ao ontem que fomos, linda, linda Anita, linda a cozi­nha de Anita, per­feita dona de casa, ima­cu­lado aven­tal sobre o ves­tido, lin­dos de se come­rem com os olhos os dese­nhos lin­dos como cere­jas, um atrás do outro, per­gunta quem pode­mos ser hoje, ama­nhã. Quem, quando as regras forem o desuso das regras de hoje como as de hoje são a liber­dade das de ontem?
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Pen­sando nisto, for­mal­mente, tal­vez não, não seja inte­gra­dor o monólogo-diálogo. Ou tal­vez sim. Inclino-me para o não. Empa­re­lhado – afi­nal, até os modos de ser na arte são 2, e não é por­que já se apro­xi­mam, têm vindo a apro­xi­mar, que são um. E, tam­bém, a reso­lu­ção não com­bina com a cri­a­ção da Ana Vidi­gal por­que é uma forma de esco­a­mento, tende para o fim e para morte, resulta, nela, e ape­nas, na con­clu­são do objecto, ou dum con­junto de objec­tos, exaus­tos de exaus­ti­vos, telas, uma outra outra, a reor­ga­ni­za­ção da orga­ni­za­ção da desor­dem, cor­tes sobre recor­tes, cola cola cola até ao limite do ver­niz, sim­ples­mente maria, sim­ples­mente verso, sim­ples­mente pala­vra recor­tada, reconto de um conto mil vezes con­tado, o único que inte­ressa ouvir. Cor­tar é sepa­rar: dis­tân­cia. Colar é jun­tar: pro­xi­mi­dade. 2. E outra vez. De outra maneira: quan­tos babe­tes ali­nha­dos, ani­nha­das no peito quan­tas bati­das do cora­ção, o que é um pai, quem é um pai na ausên­cia, todos os pais se fazem pais no regresso, Ulis­ses, quando os filhos na praia se fazem Telé­maco e os cha­mam, vol­tam. Pené­lope espera. Mas é o filho quem chama. E só assim regressa Ulis­ses. Outra vez a ordem sobre o caos em cada roseta de car­tas fecha­das em enve­lo­pes envol­tos em plás­tico, rose­tas liga­das por agra­fos, fecha­das por agra­fos, nada se solta, a col­cha cobre a cama tal como as pala­vras cobrem, ves­tem a ausên­cia e a nudez tão nua, dois cor­pos que não se encon­tram ainda assim se cor­res­pon­dem: res­pon­dem um ao outro. By Air Mail. Par Avion. O céu é cor de enve­lope e o amor tam­bém. Como se arruma a dis­tân­cia se não for pelo quo­ti­di­ano? Não, Tha­na­tos não domina. Serve a Eros. E ao con­flito. Reco­lhe. Junta. Orga­niza. Espera. Corta. Dese­nha. Risca. Pinta. Recorta. Cola. Escreve. Enverniza.

Nem na opres­são da fita cola, não sei, celo­fane, tenso, tão tenso e não rasga, nem é ras­gado, os pelu­ches não têm unhas, de tanta maci­eza, não têm, de não terem, podiam sufo­car, que perigo: há don­ze­las fecha­das em cas­te­los de lã. Há hor­ro­res ali, se qui­ser­mos, fábri­cas de abu­sa­do­res trans­pa­ren­tes, fábri­cas de víti­mas ten­ras. Sim, é isso, tudo 2. Bem, quase tudo: o pro­cesso cri­a­tivo é um.

E as coi­sas. Só as coi­sas — pala­vra bela e boa. Coi­si­nhas tam­bém. Uma das melho­res para Agos­ti­nho da Silva. Pes­soa gos­tava muito. Outros. É tal­vez uma das minhas pala­vras pre­fe­ri­das. Calha mesmo bem: a Ana Vidi­gal faz coi­sas, e entre as minhas pre­fe­ri­das, uns cora­ções de ex votos, de cera, coi­sas, lá está, de quem pede pela vida e lha dão e sina­liza a dádiva a cera de obri­gada: car­re­ga­dos de tachas e são luz que nos ilu­mina de feli­ci­dade, des­pi­dos e são nada de tão sós, à varanda numa janela de insó­nias são música de vento, ves­ti­dos de preto, tanta saudade.

 Digo o mais que falta, quase tudo, nou­tro dia.