25.7.12

"(...) entre o ótimo e o caos" | (galão escuro e quente mais sandes de queijo sem manteiga)


Dia quente.
Tomava o pequeno-almoço na mesa do canto. As chaves fechadas na mão. Ninguém lhe perguntava nada. Era de hábitos, todos o sabiam. Sem levantar os olhos pedia adoçante.
No tecto a ventoinha fazia um barulho cadenciado. Naquela manhã custou-lhe engolir.
Quando voltou para casa olhou a corda. Nunca soubera estender capas de édredon pensou. Acendeu um cigarro, foi passar a ferro.
Dia quente (e triste)

ENGOMADA

"Por guardar-se o que se quer guardar" | (alone)

Guardar uma coisa não é escondê-la ou trancá-la.
Em cofre não se guarda coisa alguma.
Em cofre perde-se a coisa à vista.

Guardar uma coisa é olhá-la, fitá-la, mirá-la por
admirá-la, isto é, iluminá-la ou ser por ela iluminado.

Guardar uma coisa é vigiá-la, isto é, fazer vigília por
ela, isto é, velar por ela, isto é, estar acordado por ela,
isto é, estar por ela ou ser por ela.

Por isso melhor se guarda o vôo de um pássaro
Do que um pássaro sem vôos.

Por isso se escreve, por isso se diz, por isso se publica,
por isso se declara e declama um poema:
Para guardá-lo:
Para que ele, por sua vez, guarde o que guarda:
Guarde o que quer que guarda um poema:
Por isso o lance do poema:
Por guardar-se o que se quer guardar.
AC

GUARDADA

Party@studio 39






22.7.12

Dimanche | (o mundo é pequeno para caramba) | O meu coração também


"Amanhã faz um mês que a Senhora está longe de casa. Primeiros dias, para dizer a verdade, não senti falta, bom chegar tarde, esquecido na conversa de esquina. Não foi ausência por uma semana: o baton ainda no lenço, o prato na mesa por engano, a imagem de relance no espelho.

Com os dias, Senhora, o leite primeira vez coalhou. A notícia de sua perda veio aos poucos: a pilha de jornais ali no chão, ninguém os guardou debaixo da escada. Toda a casa era um corredor deserto, até o canário ficou mudo. Não dar parte de fraco, ah, Senhora, fui beber com os amigos. Uma hora da noite eles se iam. Ficava só, sem o perdão de sua presença, última luz na varanda, a todas as aflições do dia.

Sentia falta da pequena briga pelo sal no tomate — meu jeito de querer bem. Acaso é saudade, Senhora? Às suas violetas, na janela, não lhes poupei água e elas murcham. Não tenho botão na camisa. Calço a meia furada. Que fim levou o saca-rolha? Nenhum de nós sabe, sem a Senhora, conversar com os outros: bocas raivosas mastigando. Venha para casa, Senhora, por favor"

Dalton Trevisan

E eu num quarto diferente contigo ao lado.

20.7.12

"depois do mar" | (Adraga) | Coisas que lemos de corpo quebrado

"As águas do mar
Aí está ele, o mar, o mais ininteligível das existências não humanas. E aqui está a mulher, de pé na praia, o mais ininteligível dos seres vivos. Como o ser humano fez um dia uma pergunta sobre si mesmo, tornou-se o mais ininteligível dos seres vivos. Ela e o mar.
Só poderia haver um encontro de seus mistérios se um se entregasse ao outro: a entrega de dois mundos incognoscíveis feita com a confiança com que se entregariam duas compreensões.
Ela olha o mar, é o que pode fazer. Ele só lhe é delimitado pela linha do horizonte, isto é, pela sua incapacidade humana de ver a curvatura da terra.
São seis horas da manhã. Só um cão livre hesita na praia, um cão negro. Por que é que um cão é tão livre? Porquê ele é o mistério vivo que não se indaga. A mulher hesita porque vai entrar.
Seu corpo se consola com sua própria exigüidade em relação a vastidão do mar porque é a exigüidade do corpo que o permite manter-se quente e é essa exigüidade que a torna pobre e livre gente, com sua parte de liberdade de cão nas areias. Esse corpo entrará no ilimitado frio que sem raiva ruge no silêncio das seis horas. A mulher não está sabendo: mas está cumprindo uma coragem. Com a praia vazia nessa hora da manhã, ela não têm o exemplo de outros humanos que transformam a entrada no mar em simples jogo leviano de viver. Ela está sozinha. O mar salgado não é sozinho porque é salgado e grande, e isso é uma realização. Nessa hora ela se conhece menos ainda do que conhece o mar. Sua coragem é a de , não se conhecendo, no entanto prosseguir. É fatal não se conhecer, e não se conhecer exige coragem. 
Vai entrando. A água salgada é de um frio que lhe arrepia em ritual as pernas. Mas uma alegria fatal – a alegria é uma fatalidade – já a tomou, embora nem lhe ocorra sorrir. Pelo contrário, está muito séria. O cheiro é de uma maresia tonteante que a desperta de seus mais adormecidos sonos seculares. E agora ela está alerta, mesmo sem pensar. A mulher é agora uma compacta e uma leve e uma aguda- e abre caminho na gelidez que, líquida, se opõe a ela, e no entanto a deixa entrar, como no amor em que a oposição pode ser um pedido.
O caminho lento aumenta sua coragem secreta. E de repente ela se deixa cobrir pela primeira onda. O sal, o iodo, tudo líquido, deixam-na por uns instantes cega, toda escorrendo- espantada de pé, fertilizada.
Agora o frio se transforma em frígido. Avançando, ela abre o mar pelo meio. Já não precisa da coragem, agora, já é antiga no ritual. Abaixa a cabeça dentro do brilho do mar, e retira uma cabeleira que sai escorrendo toda sobre os olhos salgados que ardem. Brinca com a mão na água, pausada, os cabelos ao sol, quase imediatamente já estão se endurecendo de sal. Com a concha das mãos faz o que sempre fez no mar, e com altivez dos que nunca darão explicação nem a eles mesmos: com a concha das mãos cheia de água, bebe em goles grandes, bons.
E era isso o que estava lhe faltando: o mar por dentro como o líquido espesso de um homem. Agora está toda igual a si mesma. A garganta alimentada se constringe  pelo sal, os olhos avermelham-se pelo sal secado pelo sol, as ondas suaves lhe batem e voltam pois ela é um anteparo compacto.
Mergulha de novo, de novo bebe mais água, agora sem sofreguidão pois não precisa mais. Ela é a amante que sabe que terá tudo de novo. O sol se abre mais e arrepia-a ao secá-la, ela mergulha de novo: está cada vez menos sôfrega e menos aguda. Agora sabe o que quer. Quer ficar de pé parada no mar. Assim fica pois. Como contra os costados de um navio, a água bate, volta, bate. A mulher não recebe transmissões. Não precisa de comunicação.
Depois caminha dentro da água de volta à praia. Não está caminhando sobre as águas- ah, nunca faria isso depois que há milênios já andaram sobre as águas- mas ninguém lhe tira isso: caminhar dentro das águas. Às vezes o mar lhe impõe resistência puxando-a com força para trás, mas então a proa da mulher avança um pouco mais dura e áspera.
E agora pisa na areia. Sabe que está brilhando de água , e sal e sol. Mesmo que o esqueça daqui a uns minutos, nunca poderá perder tudo isso. E sabe de algum modo obscuro que seus cabelos escorridos são de náufrago. Porque sabe – sabe que fez um perigo. Um perigo tão antigo quanto o ser humano."


Clarice L
thanks C. Lamas

15.7.12

Dimanche | (meio do mês) | E a lucidez perigosa

"Havia a levíssima embriaguez de andarem juntos, a alegria como quando se sente a garganta um pouco seca e se vê que por admiração se estava de boca entreaberta: eles respiravam de antemão o ar que estava à frente, e ter esta sede era a própria água deles.
Andavam por ruas e ruas falando e rindo, falavam e riam para dar matéria peso à levíssima embriaguez que era a alegria da sede deles.
Por causa de carros e pessoas, às vezes eles se tocavam, e ao toque - a sede é a graça, mas as águas são uma beleza de escuras - e ao toque brilhava o brilho da água deles, a boca ficando um pouco mais seca de admiração.
Como eles admiravam estarem juntos!
Até que tudo se transformou em não. Tudo se transformou em não quando eles quiseram essa mesma alegria deles. Então a grande dança dos erros. O cerimonial das palavras desacertadas. Ele procurava e não via, ela não via que ele não vira, ela que, estava ali, no entanto. No entanto ele que estava ali. Tudo errou, e havia a grande poeira das ruas, e quanto mais erravam, mais com aspereza queriam, sem um sorriso. Tudo só porque tinham prestado atenção, só porque não estavam bastante distraídos. Só porque, de súbito exigentes e duros, quiseram ter o que já tinham. Tudo porque quiseram dar um nome; porque quiseram ser, eles que eram. Foram então aprender que, não se estando distraído, o telefone não toca, e é preciso sair de casa para que a carta chegue, e quando o telefone finalmente toca, o deserto da espera já cortou os fios. Tudo, tudo por não estarem mais distraídos."
C.L
Andei perto

14.7.12

Berimbau


Berimbau
2012
Técnica mista sobre papel
76 X 56 cm

(desviar o olhar) | Each man kills the thing he loves

(imagem retirada da net)

(songs are like tattoos) | «em especial aos domingos / quando ninguém está em casa / aí por finais de Junho / subo então ao terraço / para perceber além dos muros (...)»

Blue, songs are like tattoos
You know I've been to sea before
Crown and anchor me
Or let me sail away

Hey Blue, here is a song for you
Ink on a pin
Underneath the skin
An empty space to fill in

You've got to keep thinking
Well there're so many sinking now
You've got to keep thinking
You can make it through these waves
Acid, booze and ass
Needles, guns and grass
Lots of laughs, lots of laughs

Everybody's saying that hell's the hippest way to go
Well I don't think so
But I'm gonna take a look around it though
Blue, I love you

Blue, here is a shell for you
Inside you'll hear a sigh
A foggy lullaby
There is your song from me


Blue - Cat Power
e mais esta

8.7.12

Dimanche | "Eu levo o seu coração comigo"

eu levo o seu coração comigo (eu o levo no
meu coração) eu nunca estou sem ele (a qualquer lugar
que eu vá, meu bem, e o que que quer que seja feito
por mim somente é o que você faria, minha querida)

tenho medo

que a minha sina (pois você é a minha sina, minha doçura) eu não quero
nenhum mundo (pois bonita você é meu mundo, minha verdade)
e é você que é o que quer que seja o que a lua signifique
e você é qualquer coisa que um sol vai sempre cantar

aqui está o mais profundo segredo que ninguém sabe
(aqui é a raiz da raiz e o botão do botão
e o céu do céu de uma árvore chamada vida, que cresce
mais alto do que a alma possa esperar ou a mente possa esconder)
e isso é a maravilha que está mantendo as estrelas distantes

eu levo o seu coração ( eu o levo no meu coração)


e. e. cummings



"Ela o beijou também com cuidado. Não procurou sua boca e ele se deixou comovido. Quis somente sua testa, alisou-lhe os cabelos. Fez-lhe ver o seu sofrimento, fora tão difícil que nem seu retrato pôde suportar. Onde estive então nesta casa, perguntou ele, procure e em achando haveremos de conversar. O homem se sentiu atingido por tais palavras. Mas as peregrinações lhe haviam ensinado que mesmo para dentro de casa se trazem os desafios."

Nélida Piñon in Colheita

5.7.12

2.7.12

"(...) o detestado Verão" | e " a rapariga mais bonita que algum dia acordou a meu lado, disse ele"


«Quando chegava a estação dos mergulhos, as raparigas encaravam-na com a mesma angústia que sentem as raparigas da cidade ao chegar a altura dos exames de fim de ano. Durante os primeiros anos de escola costumavam fazer concurso para verem quem conseguia apanhar o maior número de conchas no fundo da água — e essa brincadeira iniciava-as na arte de mergulhar e instigava o espírito de competição. Mas quando o divertimento dava lugar à actividade séria e severa, todas as raparigas sem excepção começavam a ser tomadas pelo medo, e a chegada da Primavera apenas significava que se aproximava o detestado Verão. Havia o frio, a sufocação, a indizível angústia de sentir a água penetrar por sob a máscara, o pânico e o medo de desmaiar no momento em que os dedos estavam apenas a alguns centímetros de um haliotis e depois toda a espécie de acidentes e as feridas na ponta dos dedos dos pés, quando para subir de novo à superfície batiam com eles no fundo do mar atapetado de pedaços de concha ponteagudos — e também a fadiga que se apoderava de todo o corpo, em resultado de mergulhos forçados para lá de toda a razão… »

 

e assim me lembrei hoje de ti, vá lá saber-se porquê.