15.12.09

Conversa de atelier, em casa - Entrevista de Susana Pomba

O que aqui se reproduz é parte de duas conversas mantidas com Ana Vidigal na sua casa, que também é o seu atelier, no tempo de dois fins de tarde de duas segundas-feiras consecutivas, durante o mês de Outubro de 2009.



A capa deste catálogo é uma fotografia do teu atelier, ou parte do teu atelier. Tudo está arrumado e no seu lugar… Como é que organizas o teu espaço de trabalho, como é que estabeleces a ordem?
Uma vez pus um título a um quadro, em que a frase não é minha, é “roubada”, que dizia, “A minha desordem é o meu capricho” Porque eu sou daquelas pessoas que se não tenho tudo exactamente no sítio em que estabeleci, tenho imensa dificuldade de concentração. É uma coisa visual, se entro num sitio e está tudo arrumadinho, eu consigo me concentrar, se as coisas estão desorganizadas, distraio-me. Sou daquele tipo de pessoas que não trabalha com música, irrita-me imenso se oiço barulhos. O silêncio para mim em questões de trabalho é fundamental. Não consigo estar nem com a televisão ligada, nem a ouvir música, seja música óptima até “Eu Tenho Dois Amores”. Com “os dois amores” começo-me a rir, com a outra começo a achar que é boa, e quando dou por mim estou a ouvir a música, não estou a trabalhar. Não consigo que aquilo me acompanhe.
Em relação à organização, desde miúda que sou assim. Quando me ia deitar dobrava primeiro sempre a minha roupa toda. Ninguém me obrigou a fazer isso. É um prazer. Não faço isto a pensar “tenho que ter tudo arrumado”. Já me aconteceu sair do atelier e estar completamente desarrumado e no dia seguinte não ter paciência. E não trabalho nesse dia, se não tenho paciência para o arrumar. Sei que se entrasse para trabalhar estragava o que tinha feito na véspera.

Nunca chegas a ter as coisas tão desarrumadas que tenhas que parar?
Já me aconteceu, costumo dizer que é quando o gajo me vence, quando a pintura me vence. Com o “outro” trabalho isso nunca acontece. Porque é muito mais “clean”. Geralmente há poucas tintas. O que suja muito são as tintas e as colagens. A cola é um inferno. Eu sou desajeitada de mãos. Tenho tudo muito arrumadinho mas tenho um grau grave de dislexia. Entorno muita coisa, sou muito baralhada quando estou a trabalhar. É engraçado, porque as pessoas acham que eu devo ser muito precisa. Não. Raramente as pessoas me vêem a trabalhar. Quando estou a trabalhar é isto (aponta para a t-shirt suja de tinta que tem vestida). A maior parte das pessoas que eu conheço não tem uma roupa específica para pintar. Eu até acho isto um cliché, ter uma “roupa para pintar”. Irrita-me, “agora vou vestir a minha roupa de pintora”, é uma coisa que me irrita. Uma daquelas coisas que vês nos filmes. Mas eu não ganho para calças de ganga com cola que não sai. Sou muito badalhoca quando estou a trabalhar (risos).

Quando estás a usar os materiais, livremente...
Sim, mas é uma liberdade que me acontece e às vezes digo - “ai que chatice que agora entornei aquilo”. Por exemplo, eu trabalho muito com tintas acrílicas líquidas e com pincéis chineses, por isso aquilo tem o pingo do pincel. Estou sempre a deixar cair pingos, esqueço-me. Pensas que uma pessoas arrumada teria essa precisão. Não tenho. Aquilo sai, cai-me um pingo e... Seria o caos se as coisas não tivessem todas no sítio.


O facto do teu atelier ser em tua casa, não há uma separação entre o que é atelier e o que é casa?
Não. Eu muitas vezes a lavar a loiça resolvo muita coisa. Gosto de lavar loiça, gosto de arranjar coisinhas, gosto de vez em quando de mudar os quadros que tenho na parede. Tenho prazer nessas coisas. Gosto imenso de tratar das plantas também, fazer cortezinhos... Eu vivo aqui, tudo se passa aqui. As coisas estão arrumadas porque dá-me prazer arrumar as coisas.


O material que vais utilizando nas tuas pinturas, os recortes, revistas, livros, estão, enquanto não são utilizados, bem arrumados. Têm um lugar próprio no teu atelier e o tempo passa até “verem a luz do dia”. Quando é que percebes que vais utilizar determinado material?
Até ele se adaptar a mim. Ou eu achar que aquelas coisas, naquela altura, “assentam-me que nem uma luva”. Eu trabalho por fases. As fases são as exposições. Quando começo a trabalhar para uma exposição, das duas uma - ou houve uma recolha recente que realmente me interessa e está muito próxima e a utilizo logo, ou então começo a abrir caixas. Começo a tirar as coisas, a ver coisas, coisas que às vezes já nem me lembro. “Não me lembro de ter guardado isto.” “Quem é que me deu isto?” Quando começo a ver coisas ou pela história da recolha ou pelo aspecto formal acho-lhes graça outra vez. Há um reencontro. E penso, que engraçado, na altura só achei piada a esta imagem por que tem graça mas neste momento, em que a minha vida está neste ponto, isto... apetece-me. E nestas coisas não me contrario nada. Eu faço rigorosamente aquilo que me apetece e faço muito poucas cedências.
Há um exemplo muito bom. O exemplo das casinhas. Eu estava em Porto Santo de férias, ia a pé para a praia e passei numa loja que nem sequer ficava no meio da vila. Olhei para a montra e vi umas casas absolutamente maravilhosas feitas em cartão. Entrei e perguntei o que é que aquilo era. O homem disse “eu sou o sapateiro e faço estas casas com as caixas dos materiais dos sapatos, e isto são as casinhas da lapinha”. A lapinha são os presépios da Madeira. Lá chegámos a uma acordo e eu trouxe as casinhas todas que o senhor tinha feito.
Haveria alguém que certamente pegaria nas casinhas e faria uma instalação com as casas exactamente como elas estavam mas eu ainda não estava em ponto de fazer uma coisa dessas, eu ainda tinha que as colar, que as utilizar como se fossem um material de colagem. Não sabia minimamente como formalmente iria pegar naquilo. Até que um dia eu estava a preparar uma exposição e tinha acabado a parte das pinturas e ia começar uma fase só em papel e fui abrir caixas. E de repente dei com as casinhas e percebi que não tinha sido só o lado formal, do engraçado, do popular. O que me tinha acontecido, o que eu tinha perdido, era a minha casa de infância, porque o meu pai tinha vendido a quinta de Alverca, portanto foi fácil. Identifiquei o que naquela altura me estava a afligir, o ter perdido aquela referência. Aquelas casas representavam “a casa”, aquela casa sou eu, cheguei a “eu” e a partir do momento em que cheguei a “eu”, o assunto está resolvido.

São coisas que te preocupam e que tens que resolver?
Não quer dizer que me preocupem. São coisas que me condicionam. Condicionam a minha maneira de actuar. Quando digo que chego a “eu”, isso é um dos elementos de toda a construção do trabalho. Depois não são as coisas que giram à volta de mim, sou eu que giro à volta delas, mas já sei que a volta é por aquele lado. Vou por ali, vou por aqui, sigo em frente, mas de repente quando me centro sei como é que rodo à volta das coisas. Tudo isto é lúdico, dá-me imenso prazer, não só pensar na parte mais mental da coisa, que é sempre aquela coisinha perversa... dou por mim muitas vezes a pensar... “a esta não chegam lá” (risos). E depois é o prazer de trabalhar. Gosto de trabalhar com as mãos. Mas claro que trabalhar com as mãos sem utilizar a cabeça, mais vale estar quieta.


Tens aqui em tua casa/atelier, duas salas grandes. Uma em que pintas, outra em que tens os teus livros, o computador, as tuas caixas de arquivo. Como se existissem dois espaços, um para a tua pintura e outro para o que chamas o teu “trabalho paralelo”
Sim, mas está relacionado com a pintura. Sempre fiz colagens. E sempre utilizei coisas apanhadas. Hoje tenho pena de algumas colagens que utilizei, tê-las utilizado com pintura por cima. Porque hoje, se as tivesse novamente, utilizava-as a cru.
Começo a fazer o chamado “trabalho paralelo” quando começo a perceber que quem decide sou eu. Que escuso de “camuflar”. Por isso é que digo que para mim o tempo é uma coisa fundamental. O tempo foi-me dando segurança. Não preciso de camuflar nada, posso fazer isto. Liberdade maravilhosa. Agora apetece-me fazer isto, quero isto.
Como eu tenho aquele lado badalhoco quando faço esses trabalhos que são mais crus limpo o estirador, porque por norma não trabalho em dimensões muito grandes, e gosto delas muito limpinhas. Geralmente trabalho de pé mas no estirador. E como utilizo muito os textos é mais fácil estar nesta sala. E como isto também são dois espaços contíguos quando preciso de alguma coisa vou ali buscar, mas não há aquela coisa dos pincéis - é tipo um lápis, um afia-lápis, a folha de papel, o agrafador...



Mas o trabalho “paralelo” se calhar já não se pode chamar de “paralelo”. Nos últimos anos tens mostrado peças que têm uma outra escala, que não a do estirador. Essa prática tem-se tornado cada vez mais importante até para a compreensão da tua pintura. Sentes que esses dois processos estão cada vez mais próximos?
A pintura sempre esteve mais acima e as outras coisas estavam um bocadinho mais para baixo. As outras coisas têm vindo a subir e logicamente há-de haver esse ponto em que estando ao mesmo nível elas se cruzam. Se fundem. Eu acho que isso é patente neste último trabalho que estou a fazer e que aparece na fotografia do atelier da capa (ao fundo) deste catálogo. Um trabalho que vai ser apresentado paralelamente à exposição mas na Arte Lisboa e que é uma viragem. Eu utilizava muito a expressão “estou a fazer bases”, ou seja, estou a fazer colagens e a seguir vou começar a pintar. Não costumo pintar directamente sobre a tela branca. O que me aconteceu é que tinha um quadro quase completamente feito... e um dia irritada achei que não havia mais nada a fazer, e sem paciência arranjei uns panos, uns lençóis, embebi aquilo tudo em água e pus o quadro de molho. Aquilo tudo “enfolou”, o papel, a cola e depois peguei num x-acto e comecei a arrancar as fotocópias. O papel tem muitas camadas, e quando arranquei uma camada fica outra, tipo felpuda. Arranquei as fotocópias todas, saíram os desenhos e a tinta e de repente fiquei, aí sim, com uma base absolutamente maravilhosa, com um papel quase mata-borrão. Foi aí que peguei na máquina e projectei os desenhos de Sharjah para ver como ficariam. Mas depois os desenhos começaram a não ficar bem, porque eu dava um encontrão na máquina e depois a máquina já não ficava no mesmo sitio e a mão já ficava para outro lado e mais não sei quê... e de repente comecei a utilizar umas “formas” que tinha comprado, uns padrões e pensei, isto não precisa de mais nada.

Esta descoberta é posterior ao trabalho que fizeste para a Bienal de Sharjah?
Sim, o trabalho de bienal tem uma história. Eu nunca iria ver aquelas revistas se não estivesse naquela sala de hospital. Tinha milhares daquelas revistas para ocupar o tempo enquanto a Madalena estava a fazer quimioterapia. E portanto a certa altura comecei a reparar que as únicas coisas que me chamavam a atenção no meio daquelas revistas todas eram aqueles bonecos... Perguntei se podia recortar e comecei a coleccionar aquelas coisas, os labirintos, os jogos, aquela parte final destas revistas todas que têm horóscopos, labirintos... coisas que sempre me fascinaram muito. Sempre utilizei bandas desenhadas do meu pai para fazer coisas, dos anos 30 e 40. E guardei aqueles recortes. Pensei – isto vai-me servir para alguma coisa. Não sabia era como.

Mas guardaste esses recortes de uma forma muito especial.
Sim, emocionalmente aquilo era muito forte. Por isso é que eu chamei à exposição “Matar o Tempo”, porque a minha maneira de sobreviver, foi matar aquele tempo. Foi a única maneira. Tudo aquilo me remete para aquela pessoa, para aquela época. Tem uma carga emocional para mim fortíssima. Geralmente todas as outras coisas, os outros recortes, também têm, ou porque são encontrados em situações peculiares, ou porque são amigos que me dão ou porque foram coisas utilizadas por alguém. Como aquelas casinhas - eu não sabia o que lhes havia de fazer até perceber que me tinha apaixonado por elas porque tinha acabado de perder “a casa”. O sítio onde, quando precisava, ia buscar coisas para as pinturas. Porque a minha avó tinha tudo religiosamente arrumado em caixas com lacinhos que diziam coisas como “o cabelo da minha irmã Palmira quando tinha 5 anos” ou “a espada do meu pai quando foi ordenado capitão, ou qualquer coisa do género. O abrir caixas para mim é uma coisa fascinante, porque tenho essa memória de infância, de abrir caixas e gavetas. Ainda hoje sinto o cheiro de quando abria as gavetas que estavam cheias de alfazema, ou as de papéis com naftalina. Quando sinto esses cheiros hoje, isso perturba-me imenso, porque me lembro da minha avó.
Da mesma maneira, quando fiz o Project Room (Arte Lisboa, 2007), por exemplo, eu não quis pegar na guerra colonial pelo seu lado político. É lógico que quando vês a instalação há uma conotação política, mas aquilo que me interessou foi o tempo de uma criança de nove anos que fica sem o pai. Nunca pensei muito sobre isso nem tive saudades enormes do meu pai, mas realmente eu tive um vazio paterno por causa de uma guerra. Nessa altura tínhamos crianças a ficarem, umas definitivamente sem, e outras, por longos períodos - o meu pai esteve na Guiné dois anos inteiros - sem pai. Por isso é que a instalação se chama “Void”, era a ausência. Eu não tenho nenhuma má memória disso. Lembro-me de algumas coisas, como a partida do meu pai para a Guiné. Lembro-me de estar na Rocha de Conde Óbidos na sala dos oficiais, em que estava toda a gente a chorar, e ver milhares de pessoas cá em baixo a despedirem-se dos soldados. Lembro-me da minha mãe depois nos meter num Volkswagen e irmos para São Pedro do Estoril, acho eu, para ver o barco desaparecer. Toda uma geração teve alguém que esteve ausente ou que desapareceu. Essa instalação era o meu quarto fielmente reproduzido. Fui às fotografias e reproduzi as coisas essenciais, a mesa onde se estuda, a cama onde se dorme, e depois os babetes, porque o meu irmão mais novo ainda comia a sopa de babete e era nessa altura que a minha mãe nos mostrava as fotografias e as cartas que o meu pai mandava. A imagem do meu irmão de babete é a ausência do meu pai.


E depois há o teu uso da linguagem. Da mesma maneira que vais recolhendo imagens, os teus recortes, guardas da mesma maneira tudo aquilo que vais lendo, textos que encontras?
Guardo. Há duas coisas que me dão imenso prazer na vida e com as quais eu perco tempo. É ver exposições e ler, principalmente, poesia. Adoro, desde miúda. Se calhar está relacionado com o facto de não ter irmãs e os meus irmãos, muitas vezes, não me deixarem brincar às brincadeiras deles. E eu era a mais velha. As minhas avós gostavam muito de ler e desde muito nova começaram a dar-me os livros indicados. Toda a Colecção Azul no original, li a Condessa de Ségur, as aventuras dos cinco, as revistas que o meu pai assinava, tipo “O Papagaio”, por isso comecei muito cedo também a ler banda desenhada. E começas a ganhar o gosto pelas leituras e o gosto por guardar os livros. Uma das minhas memórias de infância são os livros da Anita, eu adorava a Anita, era absolutamente fascinada, não propriamente pelo que a Anita fazia mas pelos desenhos. E depois lembro-me que uma das minhas grandes discussões com a minha mãe, que também era extremamente arrumada, era como organizar a minha estante onde tinha a colecção toda da Anita. A minha mãe punha 1, 2, 3, 4, 5... e eu punha encarnados, amarelos, azuis, por cores. A minha mãe irritava-se porque eu tinha uma maneira diferente de organizar (risos).
Gosto da escrita como caligrafia também, e utilizo tanto frases de Baudelaire como a seguir vou aos meus dois volumes do “Simplesmente Maria” em fotonovela, todo encadernado, que se tu tirares as frases do contexto, tem coisas absolutamente maravilhosas. E costumo misturar, tanto coloco uma frase minha, como a seguir uma da Clarice Lispector, e depois a seguir uma do “Simplesmente Maria” e depois outra minha.
Muitas vezes quando estou num impasse, resolvo vindo procurar frases. E depois encontro alguma coisa óptima mas que nem é para o trabalho que estou a fazer. Depois não sei se descansei a cabeça, se passei para outra situação, sei que depois quando vou pegar outra vez no trabalho geralmente é mais fácil continuar. É melhor parar, ir à outra sala ver umas coisas e depois continuar. Não é uma coisa que faça para ir remediar um trabalho, geralmente só ponho as frases no fim, as frases não fazem parte da composição, elas são integradas na composição que já está. Eu nunca começo um trabalho a pensar – “tenho esta frase”.

Então e os títulos?
Os títulos são a última coisa. Quadro acabado, das duas uma, ou escolho uma palavra ou duas da frase que está lá ou, e é o que mais me acontece, porque dá um gozo enorme, escolho os títulos porque tem tudo a ver ou porque não tem nada a ver