LOCK ME SAFE-SET ME FREE
Da Casa dos Segredos, de Ana Vidigal, já li que era uma escultura, uma instalação e ambas. Deixo isso para quem disse. Mas a afirmação da construção através da desconstrução de um espaço pelo realinhamento de cacifos forrados, acima, de espelho, da manipulação da luz e da circulação, não chega para descrever o que encontramos quando entramos no átrio do IST. A ser um conceito tangível, da ordem do da escultura, do da instalação, a Casa dos Segredos é um verbo no gerúndio, o único tempo que serve à fénix, ao que principia e acaba para principiar, ao contínuo humano – ao labirinto.
A Casa dos Segredos é a narração de um processo, narração feita com os recursos disponíveis no local — uma economia razoável, sensata e, predominantemente, doméstica. Nada que seja incomum nos trabalhos de Ana Vidigal. Ou melhor, é um traço distintivo neles — não há equívocos nesta transformação que actua fora como dentro: de um casaco se faz uma saia; das sobras de uma refeição outra; de mil livros lidos se escreve um inédito; de uma fotonovela faz-se uma situação numa tela. Da casa que se atravessa, faz-se o mundo por onde se caminha: labirinto é o processo de transformação de uma coisa num outro si mesmo, um centro de ser que se expande
Talvez este seja o mais tradicionalmente feminino trabalho de Ana Vidigal – o que não deixa de ser interessante como recorrência nos termos interpretativos do lugar da mulher, do conflito e da pacificação dessas posições. Talvez por isso esteja ostensivamente no átrio de um mundo tradicionalmente masculino, o IST. Logo, e paradoxalmente, é feminista. Não por contestação, por confirmação. Estamos aqui. Outro traço distintivo: a presença da dualidade, feminino-masculino. Adiante mais. E a intervenção, deveria dizer a feminização do espaço, radical: a Casa dos Segredos é, antes de ser outra coisa, uma caixa de caixas, a maior cuja tampa é a clarabóia, luz de fora filtrada para dentro, como no tempo da infância de Ana Vidigal, onde se fez pessoa, quando era através do homem fora que o mundo chegava à mulher dentro, casa-caixa-contentor de si e continente de outros, um mundo e outro mundo. As paredes erguidas tais muralha, caixas-cacifos, modo vertical de actuar, assumpção do modo masculino pelo feminino, ir ao mundo fora, levando o mundo de dentro. Um mundo e outro mundo num só mundo, uma das paredes caiu, dentro prolonga-se para fora, e fora cresce para dentro, o continente somos eu e tu, à vez. Dentro dela, a casa, nomeada na parede pelo lado externo, qual villa onde se habite: Casa dos Segredos. E este é o seu maior segredo, à vista de todos, o segredo do movimento dos tempos no tempo: este mundo masculino já é feminino, estamos aqui, diz a voz de uma mulher. O segredo é possível?
A Casa dos Segredos terá sido um reality show à semelhança de um Big Brother — o jogo de sedução de Godard quando pisca o olho ao público. A parede caiu. Da coincidência de programa e intervenção, entra-se na evidência: o espaço privado no espaço público. As tais mais dualidades acima prometidas. Ou se preferirmos, o espaço do voyeur no lugar do exibicionista: faço para que vejas, mimética proustiana, vejo para que faças. Outro traço distintivo que aqui recorre: humor, provocação, mise-en-scéne, espelho de nós, caricatura encenada. Mas existe ainda a privacidade? O lugar íntimo no tempo do chip, do gps, do FB, quando ser é comunicar que se é? A parede caiu. E, não de somenos, há também o lugar do objecto e do atributo, sintomas: sinais identitários do ser e do fazer, profissão, crença, hobby, casado, solteiro, rico, triste, aplicado, solitário, popular, fechado a segredo cadeado, a segredo solitário por entre a gente, exposto para ser visto, e exposto até à invisibilidade: lock me safe-set me free.
Mais outro traço: a repetição e a super-abundância, no caso a da mesma ideia em formas iguais e diferentes para mais completamente a explorar. Uma caixa dentro de outra caixa dentro de outra caixa. Cacifo, cacifo, cacifo, cacifo, cacifo. Acima e abaixo cacifos, caixas sobre caixas. Luz de clarabóia sobre os espelhos e devolvida para fora, de fora para dentro, de dentro para fora, outra vez, de outra maneira. Estamos aqui.
E, finalmente: buraco no tronco da árvore de Alice, caindo, entrando no labirinto, se transita do público-privado, aberto-fechado, para o eu persona-eu comigo, e um fio inteiro para me encontrares, a mim Ariadne, não à saída, não ao outro ao meu lado, igual a mim pelo lado de fora, a mim, indivíduo único, para me encontrar a mim mesmo, e para ser, individuação, ser em caminho, caminhante — em relação, em situação, no tempo. Outro traço distintivo: o diálogo, a dinâmica pessoalíssima de um processo criativo, não a dinâmica para uma resolução.
É pelos traços distintivos, que bom, porque compõem uma específica linguagem assinada, que podemos dizer: é da Ana Vidigal.
* solitário por entre a gente…, de Camões in O AMOR É FOGO QUE ARDE SEM SE VER