Com quem fala Ana Vidigal nas notas quase de rodapé das suas telas, letras uma a uma riscadas por dentro da régua, a caneta, a bisturi quando cortam, e quando colam, a quê?, firmes e certas como um passo, marcham, a quem grita enormes letras ao centro do centro de gravidade alterado pelo peso pintado das palavras, para quem a sombra que assoma em voz de minúsculas, qual lápis fino, quase fumo, num título, às vezes penso com quem andarás a dormir. Fala com ela mesma. Consigo. Comigo. Fala com todos os que alguma vez se perguntaram: com quem andarás a dormir. E com aquele tu de carne ou ficção que dorme saberá deus com que concreto ou inconcreto quem – ainda que a autobiografia, se a houvesse, não fosse mais do que o ponto de partida, mitologia pessoal, pois à chegada, na peça que criou, estamos todos. A Ana Vidigal tem a Ana Vidigal por interlocutor. E tem por interlocutores que não lhe falam, nós connosco. Mais: ela connosco. E de somenos: eu contigo.
Sim. Se uma pessoa fosse um número, a Ana Vidigal seria um 2, nem que fosse o do eu ao espelho. Quer dizer, ela ao espelho. Nós em diálogo nem que seja monólogo. Integrador? Menina Limpa Menina Suja na antologia onde mais se viu o fundamental rodopio do tempo, tempo maiúsculo, tempo capital. Tempo: o ontem é o hoje processado em busca do ontem? Que ontem? Que hoje? Ou será em busca do futuro? Ironia colorida a kitsch, poesia desenhada a pop? A pintura também tem humor – e humores
O ontem da casa, lugar da família, lugar de mulher, o do homem é o trabalho, ontem do quê e de quem, afinal? Quando, como começamos a ser, onde? Ontem, sempre ontem, com os nossos pais, na família, na casa. As casinhas. O que é um presépio, quem vive no presépio das casinhas de presépio? A representação do espaço íntimo, é um espaço social, no rodopio do tempo. É. E a mãe, o pai, são o homem e a mulher. São. E a casa e o atelier, dois mundos. 2. E assim, do eu para o tu que somos nós, onde o passado infantil converge com o adulto do presente que o aborda, a Ana Vidigal transita do indivíduo que é para a artista que é – casa e atelier. E perguntando ao ontem que fomos, linda, linda Anita, linda a cozinha de Anita, perfeita dona de casa, imaculado avental sobre o vestido, lindos de se comerem com os olhos os desenhos lindos como cerejas, um atrás do outro, pergunta quem podemos ser hoje, amanhã. Quem, quando as regras forem o desuso das regras de hoje como as de hoje são a liberdade das de ontem?
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Pensando nisto, formalmente, talvez não, não seja integrador o monólogo-diálogo. Ou talvez sim. Inclino-me para o não. Emparelhado – afinal, até os modos de ser na arte são 2, e não é porque já se aproximam, têm vindo a aproximar, que são um. E, também, a resolução não combina com a criação da Ana Vidigal porque é uma forma de escoamento, tende para o fim e para morte, resulta, nela, e apenas, na conclusão do objecto, ou dum conjunto de objectos, exaustos de exaustivos, telas, uma outra outra, a reorganização da organização da desordem, cortes sobre recortes, cola cola cola até ao limite do verniz, simplesmente maria, simplesmente verso, simplesmente palavra recortada, reconto de um conto mil vezes contado, o único que interessa ouvir. Cortar é separar: distância. Colar é juntar: proximidade. 2. E outra vez. De outra maneira: quantos babetes alinhados, aninhadas no peito quantas batidas do coração, o que é um pai, quem é um pai na ausência, todos os pais se fazem pais no regresso, Ulisses, quando os filhos na praia se fazem Telémaco e os chamam, voltam. Penélope espera. Mas é o filho quem chama. E só assim regressa Ulisses. Outra vez a ordem sobre o caos em cada roseta de cartas fechadas em envelopes envoltos em plástico, rosetas ligadas por agrafos, fechadas por agrafos, nada se solta, a colcha cobre a cama tal como as palavras cobrem, vestem a ausência e a nudez tão nua, dois corpos que não se encontram ainda assim se correspondem: respondem um ao outro. By Air Mail. Par Avion. O céu é cor de envelope e o amor também. Como se arruma a distância se não for pelo quotidiano? Não, Thanatos não domina. Serve a Eros. E ao conflito. Recolhe. Junta. Organiza. Espera. Corta. Desenha. Risca. Pinta. Recorta. Cola. Escreve. Enverniza.
Nem na opressão da fita cola, não sei, celofane, tenso, tão tenso e não rasga, nem é rasgado, os peluches não têm unhas, de tanta macieza, não têm, de não terem, podiam sufocar, que perigo: há donzelas fechadas em castelos de lã. Há horrores ali, se quisermos, fábricas de abusadores transparentes, fábricas de vítimas tenras. Sim, é isso, tudo 2. Bem, quase tudo: o processo criativo é um.
E as coisas. Só as coisas — palavra bela e boa. Coisinhas também. Uma das melhores para Agostinho da Silva. Pessoa gostava muito. Outros. É talvez uma das minhas palavras preferidas. Calha mesmo bem: a Ana Vidigal faz coisas, e entre as minhas preferidas, uns corações de ex votos, de cera, coisas, lá está, de quem pede pela vida e lha dão e sinaliza a dádiva a cera de obrigada: carregados de tachas e são luz que nos ilumina de felicidade, despidos e são nada de tão sós, à varanda numa janela de insónias são música de vento, vestidos de preto, tanta saudade.
Digo o mais que falta, quase tudo, noutro dia.