1.2.12

Ana Vidigal | Eugénia Vasconcellos

Com quem fala Ana Vidi­gal nas notas quase de rodapé das suas telas, letras uma a uma ris­ca­das por den­tro da régua, a caneta, a bis­turi quando cor­tam, e quando colam, a quê?, fir­mes e cer­tas como um passo, mar­cham, a quem grita enor­mes letras ao cen­tro do cen­tro de gra­vi­dade alte­rado pelo peso pin­tado das pala­vras, para quem a som­bra que assoma em voz de minús­cu­las, qual lápis fino, quase fumo, num título, às vezes penso com quem anda­rás a dor­mir. Fala com ela mesma. Con­sigo. Comigo. Fala com todos os que alguma vez se per­gun­ta­ram: com quem anda­rás a dor­mir. E com aquele tu de carne ou fic­ção que dorme saberá deus com que con­creto ou incon­creto quem – ainda que a auto­bi­o­gra­fia, se a hou­vesse, não fosse mais do que o ponto de par­tida, mito­lo­gia pes­soal, pois à che­gada, na peça que criou, esta­mos todos. A Ana Vidi­gal tem a Ana Vidi­gal por inter­lo­cu­tor. E tem por inter­lo­cu­to­res que não lhe falam, nós con­nosco. Mais: ela con­nosco. E de some­nos: eu contigo.

Sim. Se uma pes­soa fosse um número, a Ana Vidi­gal seria um 2, nem que fosse o do eu ao espe­lho. Quer dizer, ela ao espe­lho. Nós em diá­logo nem que seja monó­logo. Inte­gra­dor? Menina Limpa Menina Suja na anto­lo­gia onde mais se viu o fun­da­men­tal rodo­pio do tempo, tempo maiús­culo, tempo capi­tal. Tempo: o ontem é o hoje pro­ces­sado em busca do ontem? Que ontem? Que hoje? Ou será em busca do futuro? Iro­nia colo­rida a kitsch, poe­sia dese­nhada a pop? A pin­tura tam­bém tem humor – e humores

O ontem da casa, lugar da famí­lia, lugar de mulher, o do homem é o tra­ba­lho, ontem do quê e de quem, afi­nal? Quando, como come­ça­mos a ser, onde? Ontem, sem­pre ontem, com os nos­sos pais, na famí­lia, na casa. As casi­nhas. O que é um pre­sé­pio, quem vive no pre­sé­pio das casi­nhas de pre­sé­pio? A repre­sen­ta­ção do espaço íntimo, é um espaço social, no rodo­pio do tempo. É. E a mãe, o pai, são o homem e a mulher. São. E a casa e o ate­lier, dois mun­dos. 2. E assim, do eu para o tu que somos nós, onde o pas­sado infan­til con­verge com o adulto do pre­sente que o aborda, a Ana Vidi­gal tran­sita do indi­ví­duo que é para a artista que é – casa e ate­lier. E per­gun­tando ao ontem que fomos, linda, linda Anita, linda a cozi­nha de Anita, per­feita dona de casa, ima­cu­lado aven­tal sobre o ves­tido, lin­dos de se come­rem com os olhos os dese­nhos lin­dos como cere­jas, um atrás do outro, per­gunta quem pode­mos ser hoje, ama­nhã. Quem, quando as regras forem o desuso das regras de hoje como as de hoje são a liber­dade das de ontem?
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Pen­sando nisto, for­mal­mente, tal­vez não, não seja inte­gra­dor o monólogo-diálogo. Ou tal­vez sim. Inclino-me para o não. Empa­re­lhado – afi­nal, até os modos de ser na arte são 2, e não é por­que já se apro­xi­mam, têm vindo a apro­xi­mar, que são um. E, tam­bém, a reso­lu­ção não com­bina com a cri­a­ção da Ana Vidi­gal por­que é uma forma de esco­a­mento, tende para o fim e para morte, resulta, nela, e ape­nas, na con­clu­são do objecto, ou dum con­junto de objec­tos, exaus­tos de exaus­ti­vos, telas, uma outra outra, a reor­ga­ni­za­ção da orga­ni­za­ção da desor­dem, cor­tes sobre recor­tes, cola cola cola até ao limite do ver­niz, sim­ples­mente maria, sim­ples­mente verso, sim­ples­mente pala­vra recor­tada, reconto de um conto mil vezes con­tado, o único que inte­ressa ouvir. Cor­tar é sepa­rar: dis­tân­cia. Colar é jun­tar: pro­xi­mi­dade. 2. E outra vez. De outra maneira: quan­tos babe­tes ali­nha­dos, ani­nha­das no peito quan­tas bati­das do cora­ção, o que é um pai, quem é um pai na ausên­cia, todos os pais se fazem pais no regresso, Ulis­ses, quando os filhos na praia se fazem Telé­maco e os cha­mam, vol­tam. Pené­lope espera. Mas é o filho quem chama. E só assim regressa Ulis­ses. Outra vez a ordem sobre o caos em cada roseta de car­tas fecha­das em enve­lo­pes envol­tos em plás­tico, rose­tas liga­das por agra­fos, fecha­das por agra­fos, nada se solta, a col­cha cobre a cama tal como as pala­vras cobrem, ves­tem a ausên­cia e a nudez tão nua, dois cor­pos que não se encon­tram ainda assim se cor­res­pon­dem: res­pon­dem um ao outro. By Air Mail. Par Avion. O céu é cor de enve­lope e o amor tam­bém. Como se arruma a dis­tân­cia se não for pelo quo­ti­di­ano? Não, Tha­na­tos não domina. Serve a Eros. E ao con­flito. Reco­lhe. Junta. Orga­niza. Espera. Corta. Dese­nha. Risca. Pinta. Recorta. Cola. Escreve. Enverniza.

Nem na opres­são da fita cola, não sei, celo­fane, tenso, tão tenso e não rasga, nem é ras­gado, os pelu­ches não têm unhas, de tanta maci­eza, não têm, de não terem, podiam sufo­car, que perigo: há don­ze­las fecha­das em cas­te­los de lã. Há hor­ro­res ali, se qui­ser­mos, fábri­cas de abu­sa­do­res trans­pa­ren­tes, fábri­cas de víti­mas ten­ras. Sim, é isso, tudo 2. Bem, quase tudo: o pro­cesso cri­a­tivo é um.

E as coi­sas. Só as coi­sas — pala­vra bela e boa. Coi­si­nhas tam­bém. Uma das melho­res para Agos­ti­nho da Silva. Pes­soa gos­tava muito. Outros. É tal­vez uma das minhas pala­vras pre­fe­ri­das. Calha mesmo bem: a Ana Vidi­gal faz coi­sas, e entre as minhas pre­fe­ri­das, uns cora­ções de ex votos, de cera, coi­sas, lá está, de quem pede pela vida e lha dão e sina­liza a dádiva a cera de obri­gada: car­re­ga­dos de tachas e são luz que nos ilu­mina de feli­ci­dade, des­pi­dos e são nada de tão sós, à varanda numa janela de insó­nias são música de vento, ves­ti­dos de preto, tanta saudade.

 Digo o mais que falta, quase tudo, nou­tro dia.