Olho, quase todos os dias, para uma obra da Ana Vidigal. É um enigma, como devem ser todas as obras. Fala comigo. Para Julia Kristeva, "hoje em dia, nada ou quase nada, se faz sem fala, e é necessário saber apesar de tudo se essa coisa que fala quando eu falo e que me implica totalmente em cada som que enuncio, em cada palavra que escrevo, em cada signo que faço, se essa coisa é realmente eu, ou um outro que existe em mim, ou ainda um não sei quê de exterior a mim mesmo que se exprime através da minha boca em virtude de qualquer processo ainda inexplicado". Ana Vidigal é das artistas que mais tem trabalhado com esse universo sígnico, com os vestígios resultantes da tarefa de viver, revelando paradoxos e polissemias, repensando, à sua maneira muito pessoal, uma certa ideia de pintura em relação muito próxima com a questão da materialidade da linguagem. Na próxima Quarta-Feira, a Ana inaugura nova exposição individual na Galeria Andrea Baginski C, às 22h. Mas não se esqueçam que, como bem refere J. Kristeva, "diante de uma pintura, os fantasmas desaparecem, a fala cala-se". Não vou perder!! E leiam este texto muito fixe escrito pela Susana Pomba:
Ana Vidigal
“Em Primeiro Lugar o Fim (rigorosamente pessoal)”
Baginski Galeria/Projectos
De 26 de Março a 24 de Maio de 2014
O dia começa com oatelier arrumado.
Os títulos das obras de Ana Vidigal são a última coisa a serescolhida e “colocada”. Ou já estão lá, à mão de semear, nas próprias colagensou então a escolha é feita com coisas que caem nas mãos da artista (dosarquivos, recortes e cadernos que acumula). Esses títulos ou se relacionam eassentam que nem uma luva (nas mãos), ou são colocados por pura oposição eactividade humorística.
Por isso podemos, “Em Primeiro Lugar” começar por enunciareste “Fim”: “Rei Pequenino”, “A Deliciosa Banalidade do Quotidiano”, “Monet (nenúfares)”, “The Perversions of Quiet Girls”, “SortidoFino”, “A Vida Dói”, “O Medo Incentiva a Coragem” , “Marisol” e “Pandora”.Agora, a escolha é de cada um, e sem medos, “rigorosamente pessoal”.
A roupa do pintor que trabalha. Aqui a palavra “pintor” nãoé substantivo masculino, quer-se sem género. E coloca-se assim como provocação.Como já não existem poetisas mas poetas, também não existe o feminino dapalavra pintor. Sempre gostei mais de dizer obrigado do que obrigada. Obrigadaa nada. Sempre gostei mais de dizer artista.Rei Pequenino.
Enquanto vestes a “farda” pela manhã, lembras-te do lugarcomum que é a roupa de trabalho do artista. Mas dizes, não se ganha para tirara cola que se acumula nas calças de ganga. Por isso ela existe. A roupa detrabalho é aquela que não se leva à rua, uma farda que não sai de casa. Mas trabalhastambém com a roupa que escolhes de manhã para sair, uma escolha feita por entreas peças que se retirou e se arrumou à noite antes de dormir e outras novas elimpas que estão no armário. Cada peça de roupa tem o seu galho. E depois deixasa casa arrumada porque vais sair porta fora para trabalhar. O trabalho sujo e otrabalho limpo. A Deliciosa Banalidade doQuotidiano.
Ao longo do diatrabalha-se muito.
Voltaste a casa com elipses amarelas e fluorescentes.Aquelas para escrever preços e promoções. Os nenúfares são rodelas autocolantescolocadas estrategicamente por cima e a tapar sem misericórdia um antigo posterde um filme bem conhecido de Stanley Kubrick, “2001. Odisseia no Espaço”. Aquiaparece de repente um exercício quase matemático: um ícone másculo mais outroícone másculo, não resulta em ícone másculo nenhum. É o fim da acção de atelierde Ana Vidigal ao retirar os papéis por detrás dos autocolantes e calcar,apagando de forma precisa o poster clássico tornando-o um wallpaper, ou umbackground, ou um desktop, ou uma paisagem longínqua. Kubrick como paisagemsecundária, Monet como elemento decorativo. A soma das partes feita no atelier quandosai para a rua é muito maior. Ponto. Monet(nenúfares).
Viras telas de 2 metros por 2 metros com os polegares dasduas mãos. Depois com as mãos inteiras e com a ajuda do que estiver por perto.Contingências. Continua-se. Raramente as pessoas te vêem a trabalhar. Colocasplásticos que guardam o chão e retiras as tampas aos potes de cola. Cortas afita cola castanha com uma tesoura afiada. Não há música. Os barulhosdistraem-te, se forem bons ou maus. Passeias entre o atelier, a biblioteca e o arquivo,abres caixas e gavetas. Estas já não cheiram a alfazema como as da tua avó. Vaisem direcção à cozinha, passando pela sala. Tu tens o atelier em casa, vivesaqui, tudo se passa aqui. The Perversionsof Quiet Girls.
De repente aparece umproblema
Lavar a loiça e o trabalho intelectual não são a mesma coisa.Discordo. São o mesmo. Quando lavas a loiça resolves problemas importantes. Nãodeixas de pensar. O prazer que tens nessas actividades, iluminam as outras. Eu tambémfaço isso, às vezes resolvo problemas em estado de sonolência. E isso obriga-mea levantar todos os dias da cama.
O trabalho da Ana Vidigal sente-se sempre como o sumário primordialda vida que tínhamos, há umas boas décadas atrás, das memórias totalmente entrelaçadasentre vida doméstica e vida pública, pessoal e colectiva, vida de família evida como elemento activo dentro de um país. De livros, revistas e discosperdidos e rasgados que contêm traços do que agora podemos finalmente pensar davida que foi e da que estamos a ter agora. Mas desagrada-me esta separação feitaem dualidade de pares de palavras e pergunto, e tenho vindo a perguntar sempre pelomeio deste texto (ao mesmo tempo inteiro e desfeito em bocados), se não é tudo apenasum. Sortido Fino.
Não sabes o que hás-de fazer com um trabalho em curso, tensmedo de estragar tudo, está tudo desarrumado ao pé de ti e vais dar uma volta. Comprazer, podas pequenas partes das plantas junto à janela, lavas a tal loiça. A Vida Dói.
Um desenho de uma tal Mena é encontrado, dobrado e agrafado aopapel de parede cor de rosa. A imagem, um desenho humorístico, de trêsraparigas que correm para o lugar mais alto de um pódio aparentemente por causade um rato, é exposto e singularizado para que possa ser repensado. Nãofiquemos pela rama. Elas chegaram lá, se entretanto se assustaram com umacontecimento banal, é apenas o percurso natural, tragédias que se encontrampelo caminho de qualquer pessoa. O MedoIncentiva a Coragem.
Faz-se uma escolha econtinua-se
Uma narrativa criada por Ana Vidigal, com ordem numérica, e escritaa lápis sobre papel de parede dobrado, para receber uma série de fotografias antigasde cinema da actriz e cantora espanhola Marisol, rapariga loira de olhos azuis.As semelhanças e referências seja ao que for desenrolam-se à nossa frente -façam favor de se projectarem e de perceber a história que quiserem. Totalliberdade, nenhum julgamento. De espingarda na mão, como galã da matiné, comouma grande sonsa ou como quem diz “eu se fosse a ti piava fininho”. Afinal, somosconvidados logo no início da história. Hipóteses múltiplas.Marisol
Estas obras que se fazem de “retalhos”, são bocados de ofertas,de recolhas da artista, pedaços que cataloga, que arruma em caixas com frasesinformativas escritas na tampa que alertam para o seu interior, e que podem ounão ser abertas num futuro próximo. A escolha é apenas de uma pessoa. A escolhapode ser a de restituir algum do interior dessas caixas a outras caixas, partesintegrantes de um extenso arquivo vertical com paredes feitas de páginas derevistas de arte (Art Forum). Pandora
Ao fim do diavolta-se a arrumar tudo outra vez.
Finalmente, riscas os bocados que não te interessam na contracapa e índice da Reader’s Digest, seleccionando desta maneira o título daexposição. No interior encontras outra frase que vai existir entre parêntesis,colada à que foi encontrada primeiro.
Trabalhar no atelier, despir a farda, arrumar, lavar aloiça, podar as plantas, mudar a configuração dos quadros que tens na parede, olharpara os vizinhos na rua, dispor os alimentos no prato. E “Quando a morte vier,que me encontre a trabalhar”, já dizia o Ovídeo.
Susana Pomba