Heranças indesejadas
No encontro das pesquisas de Ana Vidigal e Nuno Nunes-Ferreira prevalece certa melancolia não apenas quanto à forma como lidam e recodificam suas memórias familiares, mas também como ambos observam e remodelam narrativas para as múltiplas histórias de Portugal. O seu olhar certamente não é o do nacionalismo tão proclamado pelos Da Vinci, em 1989, na música “Conquistador”: “Era todo um povo / guiado pelos céus / espalhou-se pelo mundo / seguindo os seus heróis / e levaram a luz da cultura / semearam laços de ternura / foram mil epopéias / vidas tão cheias / foram oceanos de amor”.
Não há nada de amoroso nas relações coloniais disseminadas pelo esferas estatais de Portugal – do Império à democracia recente. De toda forma, esse ideário que constitui uma identidade hegemônica portuguesa permanece e, talvez desde o Estado Novo, está latente – vide os quase quinhentos mil votos recebidos por certo candidato à presidência que organizou, após a trágica morte de Bruno Condé, uma manifestação afirmando que “Portugal não é racista”. Neste momento em que as narrativas históricas são moldadas via tweets e fake news, é essencial tocar nos traumas históricos das muitas histórias da colonização de Portugal – vistas, por exemplo, nos monumentos públicos espalhados pelo país.
O que esta exposição propõe é um exercício intimista de rememoração, reflexão e fissura em pequenas histórias que compõem o quebra-cabeça de um todo extremamente complexo onde processos de racismo estrutural foram solidificados ao passo que uma geração de recrutados portugueses sofreu traumas insuperáveis. No anseio de uma disputa para a memória coletiva e reparação histórica, nada melhor que começarmos a partir de nossos baús, álbuns e mesas de jantar.
Raphael Fonseca