Amor –próprio
Proeminência,.
Das primeiras vezes que voltei só a pintar pensei: é coisa de dentro. E sei que de dentro podia ser traição ou ciúme, faca no estômago ou noite de insónia. Eram definitivamente recados de amor. Coisas.
Ela, a pintura lá saberá o porquê destas coisas, a mim só me interessa aceitar a missiva, guardar com o gozo de não partilhar por palavras. Tudo pour le plaisir des yeux , sem vergonha e sem pudor.
Sempre senti a dualidade.
Reparei sempre nas outras coisas, os desenhos e as colagens antes da tinta. Às vezes fico na dúvida se lhes chamo desenhos, se lhes chamo pinturas tal não é a confusão entre cola e grafite e muita papelada. Técnica mista resolve o assunto. Mas a tela lá saberá como chamar-lhe e ainda um dia lhe vou perguntar como gostará que eu lhe chame, mas isso agora não interessa, nem a mim nem à tela, pois só usei tinta e papel.
As paredes fecham o lugar, e os lugares da casa funcionam como círculos tangentes (coisa de colagens, pinturas ou técnicas mistas passadas) e a luz passa pelas janelas rasgadas de alto a baixo.
As coisas mudam de lugar – menos o galo de louça na prateleira mais alta – os dias passam elegantes e violentos, por vezes animalescos por vezes excêntricos sempre corajosos, como corajoso é o ato de pincelar em cima da memória, dando cabo dela.
Sinto por vezes uma espécie de punição pelo prazer de fazer, um arranca corações com a secreta nostalgia do prazer tirado a ferros.
Agora não me apetece dizer mais nada
Mas ela diz :
“Havia dias assim, em que ela compreendia tão bem e via tanto que terminava numa embriaguez suave e tonta, quase ansiosa, como se as suas percepções sem pensamentos arrastassem-na em brilhante e doce turbilhão para onde, para onde...”
Clarice Lispector, in O Lustre, pag 64
Andorinhas e morcegos disputam o céu da minha janela. Nos fins de tarde quando começa a aquecer, o ferro da varanda parece brasa. Já não fumo ali. Já não fumo em lado nenhum, mas continuo a ter o habito de intervalar à varanda como se fosse “smokar”. Os hábitos, mais do que os vícios são muito difíceis de perder. Andorinhas e morcegos disputam o céu da minha janela e eu voltei a pintar.
Agora é que não me apetece mesmo dizer mais nada
Ana vidigal
Fevereiro de 2020