É urgente o amor.
É urgente um barco no mar.
É urgente destruir certas
palavras,
ódio, solidão e crueldade,
alguns lamentos,
muitas espadas.
É urgente inventar alegria,
multiplicar os beijos, as
searas,
é urgente descobrir rosas e
rios
e manhãs claras.
Cai o silêncio
nos ombros e a luz
impura, até doer.
É urgente o amor, é urgente
permanecer.
Eugénio de Andrade
Ana Vidigal é uma contadora
de histórias. Relatos vários de
afinidade e afeição,
memórias
que transportam consigo o traço da artista, que reflectem os seus ideais.
Muitas sobre o tempo, outras sobre os tempos em nós. Conexões de pessoas, lugares, cheiros e momentos.
Como é natural para
quem possui tais habilidades, os enredos cruzam-se e abrem caminho a novas
narrativas dentro de um enquadramento maior.
Mas é mais
que isso: são
histórias
necessárias.
São a primeira
pessoa de quem viu a sua liberdade chegar por meio de uma revolução. Ana fala-me de tempos que não vivi. De um
Portugal tradicionalista depois de anos de ditadura e uma guerra colonial a dar
os primeiros passos numa eventual abertura, com novos mundos e direitos por
reivindicar. Tempos onde se tomou certas liberdades como garantias e acreditou
em dias melhores. Tempos de “Primaveras”, cada com as
suas reverberações.
E, nesta medida, haverá arquivo
que nos chegue como a história oral? A proximidade possibilita a empatia
e, a empatia confere proximidade. E tal é importante
interiorizar quando dizem que a história “repete-se”, “repete-se sempre” [Hegel]. Tal é urgente
porque ainda temos longas trilhas por percorrer, e outras por fazer permanecer.
As obras de Vidigal também são contadoras de histórias. Não apenas no
plano formal, através da colagem, pintura e da plasticidade
inerente à manualidade da sua metodologia mas, sobretudo,
pela narrativa que cada elemento contêm e o torna tão pessoal. Eles
encerram em si fragmentos, lembranças do passado, objectos herdados, dados ou
encontrados, recortes ou capadas de jornais, cartoons, páginas de
livros. Um processo meticuloso de adição de signos e cruzamento de enredos, à semelhança do atelier onde trabalha: espaço vivo de acumulações. Pequenos recipientes, arquivos, gavetas e tesourinhas em divisões grandes ou
maiores. Lugares de acondicionamentos, repositório de instantes. Também o espaço de trabalho são ideias, histórias, em potência. Prontas a ser (re)descobertas.
Enfim, as acumulações, os recortes, as histórias, as
caixas: tudo peças
de um puzzle que se atraem, e que a artista recria habilmente em novas
linguagens, gestos, obras. Num processo de constante revelação e omissão, quer pelo
uso da palavra como da imagem muita vezes rasurada ou sobreposta. Uma praxis
que traz ao de cima um passado que se mistura com o presente e projecta no
futuro. Como o fluxo da vida, em permanente transformação, em constante
implicância,
numa cadência de relações com sentidos
imprevistos.
Sal nos olhos,
exposição
individual na galeria Diferença, é fruto
de tudo isso. É reflexo de um
olhar atento, que arde de tanto ver. Como o sal arde nos olhos. As obras
apresentadas resgatam, naturalmente, as inquietações da artista numa dimensão política dominante,
potencializada por títulos
cuidadosamente engendrados. Por um lado períodos de liberalização política e a preponderância
da juventude nestes processos, por outro a banalização da posse de armas, criminalidade e influência do seu
mercado. A “sujidade” ou precariedade
nas raquetes de ping pong ironiza uma nação em incerteza. Toda uma cultura sedutora do
falso, do simulado, do plástico ou descartável. Uma amálgama de referências como os dias que vivemos, que convidam a
analisar temas de uma dimensão emergente, a
sair da apatia. Principalmente porque nem tudo está assim tão “harmonioso”.
Considerar se viveremos na iminência de um presente cujas incertezas ecoam
divergências esquecidas do passado e memórias abortadas
de futuro. Escolher quais as histórias que queremos contar. Ter essa liberdade e
ter outras “narrativas”, mais perspectivas,
novas vozes e formas de traduzir o mundo.
Carolina
Trigueiros, 2019