22.6.19

Ana Vidigal | SAL NOS OLHOS | Galeria Diferença



É urgente o amor.
É urgente um barco no mar.

É urgente destruir certas palavras,
ódio, solidão e crueldade,
alguns lamentos,
muitas espadas.

É urgente inventar alegria,
multiplicar os beijos, as searas,
é urgente descobrir rosas e rios
e manhãs claras.

Cai o silêncio nos ombros e a luz
impura, até doer.
É urgente o amor, é urgente
permanecer.

Eugénio de Andrade

Ana Vidigal é uma contadora de histórias. Relatos vários de afinidade e afeição, memórias que transportam consigo o traço da artista, que reflectem os seus ideais. Muitas sobre o tempo, outras sobre os tempos em nós. Conexões de pessoas, lugares, cheiros e momentos. Como é natural para quem possui tais habilidades, os enredos cruzam-se e abrem caminho a novas narrativas dentro de um enquadramento maior.

Mas é mais que isso: são histórias necessárias. São a primeira pessoa de quem viu a sua liberdade chegar por meio de uma revolução. Ana fala-me de tempos que não vivi. De um Portugal tradicionalista depois de anos de ditadura e uma guerra colonial a dar os primeiros passos numa eventual abertura, com novos mundos e direitos por reivindicar. Tempos onde se tomou certas liberdades como garantias e acreditou em dias melhores. Tempos de Primaveras, cada com as suas reverberações. E, nesta medida, haverá arquivo que nos chegue como a história oral? A proximidade possibilita a empatia e, a empatia confere proximidade. E tal é importante interiorizar quando dizem que a história repete-se, repete-se sempre [Hegel]. Tal é urgente porque ainda temos longas trilhas por percorrer, e outras por fazer permanecer.

As obras de Vidigal também são contadoras de histórias. Não apenas no plano formal, através da colagem, pintura e da plasticidade inerente à manualidade da sua metodologia mas, sobretudo, pela narrativa que cada elemento contêm e o torna tão pessoal. Eles encerram em si fragmentos, lembranças do passado, objectos herdados, dados ou encontrados, recortes ou capadas de jornais, cartoons, páginas de livros. Um processo meticuloso de adição de signos e cruzamento de enredos, à semelhança do atelier onde trabalha: espaço vivo de acumulações. Pequenos recipientes, arquivos, gavetas e tesourinhas em divisões grandes ou maiores. Lugares de acondicionamentos, repositório de instantes. Também o espaço de trabalho são ideias, histórias, em potência. Prontas a ser (re)descobertas.

Enfim, as acumulações, os recortes, as histórias, as caixas: tudo peças de um puzzle que se atraem, e que a artista recria habilmente em novas linguagens, gestos, obras. Num processo de constante revelação e omissão, quer pelo uso da palavra como da imagem muita vezes rasurada ou sobreposta. Uma praxis que traz ao de cima um passado que se mistura com o presente e projecta no futuro. Como o fluxo da vida, em permanente transformação, em constante implicância, numa cadência de relações com sentidos imprevistos.

Sal nos olhos, exposição individual na galeria Diferença, é fruto de tudo isso. É reflexo de um olhar atento, que arde de tanto ver. Como o sal arde nos olhos. As obras apresentadas resgatam, naturalmente, as inquietações da artista numa dimensão política dominante, potencializada por títulos cuidadosamente engendrados. Por um lado períodos de liberalização política e a preponderância da juventude nestes processos, por outro a banalização da posse de armas, criminalidade e influência do seu mercado. A sujidade ou precariedade nas raquetes de ping pong ironiza uma nação em incerteza. Toda uma cultura sedutora do falso, do simulado, do plástico ou descartável. Uma amálgama de referências como os dias que vivemos, que convidam a analisar temas de uma dimensão emergente, a sair da apatia. Principalmente porque nem tudo está assim tão harmonioso.

Considerar se viveremos na iminência de um presente cujas incertezas ecoam divergências esquecidas do passado e memórias abortadas de futuro. Escolher quais as histórias que queremos contar. Ter essa liberdade e ter outras narrativas, mais perspectivas, novas vozes e formas de traduzir o mundo.


Carolina Trigueiros, 2019