Ana Vidigal (2015)
Ana Vidigal é artista plástica. A pintura, a colagem e a
memória do que se passa em casa e na infância estão no centro da sua obra.
Um verso de Fernando Pessoa: “Navegar é preciso, viver não é
preciso”. O problema é que viver é preciso. Quais são as dificuldades concretas
do viver que acha mais preocupantes em Portugal?
O que acho preocupante em Portugal no ano de 2015 é que
aqueles que beneficiaram de duas das melhores coisas da Revolução de Abril (a
mobilidade social e o Estado Social) estejam agora no poder a desmantelar todas
essas conquistas, impedindo, assim, que as gerações mais novas beneficiem do
que eles beneficiaram e os fez chegar onde chegaram. E isso limita tudo e
qualquer avanço, quer cultural quer económico.
Há 40 anos tivemos um Verão Quente, com o país a rasgar-se.
Empresas e propriedades nacionalizadas, empresários a fugir para o Brasil. Que
sequelas temos dessa fractura ideológica?
Eu tinha 15 anos e lembro-me muito bem do Verão Quente. Não
foram só os empresários que fugiram para o Brasil. E se uns “fugiram”, outros,
tal como agora, foram à procura de trabalho. Havia poucos profissionais
liberais (não esquecer que só a classe mais elevada estudava e tinha acesso ao
curso geral dos liceus e universidade). Muitos ficaram sem trabalho.
O que lembra do Verão de 75?
Esse verão foi passado, como sempre, na Praia Grande, em
“clima democrático”. Cruzavam-se à beira mar o antigo ministro dos Negócios
Estrangeiros de Marcello Caetano, Rui Patrício, e o recém chegado, exilado
político, Mário Soares. No resto do país reinava a histeria. Em Almada, a 18 de
Agosto, o primeiro ministro Vasco Gonçalves, num discurso acalorado (dizem as
más línguas que a BBC o passou sem som, tal era a coreografia facial) exortava
as massas contra o “grande capital”, os burgueses e a propriedade privada.
Nós, adolescentes, entre “amores de praia que se enterram na
areia”, jogávamos ao prego, usávamos creme Nívea e óleo Johnson e lamentávamos
os privilégios perdidos. Ninguém sabia da existência do buraco do ozono. E
ninguém imaginava um JSD alucinado como primeiro ministro 40 anos depois.
Também há 40 anos, o país recebeu 700 mil retornados,
Angola, Moçambique e Cabo Verde tornaram-se independentes. Viveu a situação de
perto?
Estive no Aeroporto da Portela nesse Verão. Famílias
inteiras, vindas das ex-colónias, viviam no aeroporto. O que mais me
impressionou foi o cheiro. Malas amontoadas e pessoas desesperadas. Com um ar
alucinado alguém procurava uma mala onde tinha o seu diploma de enfermeiro.
Dizia: “Tenho de a encontrar, tenho de a encontrar”. As pessoas comiam e
dormiam em cima de cobertores. A melhor aluna da minha turma do 7º ano era
retornada. Morava numa casa ocupada, em frente ao Museu de Arte Antiga. A
dividir os quartos havia cordas e lençóis. No Vale do Jamor viviam os
timorenses.
Acha o discurso: “Eles são todos iguais!” uma consequência
banal do estado a que isto chegou? Ou considera que é grave e abre espaço a
populismos?
Demonstra muita falta de informação e como consequência abre
espaço a populismos. É grave.
Oficialmente saímos da crise. Com cautelas, uma parte da população
recuperou hábitos anteriores à chegada da Troika. À esquerda e sobretudo à
direita, disse-se que Portugal tinha vivido acima das suas possibilidades e que
era preciso aprender a viver de outra maneira. Aprendeu?
Viver acima das possibilidades? Sempre achei essa afirmação
ridícula. As pessoas vivem a tentar suprimir as suas necessidades. E mesmo que
isso fosse verdade, seria justificado por dezenas de anos de políticas
paupérrimas ao nível da educação, da cultura e da saúde e de uma geração morta e
estropiada numa guerra colonial. Eu não aprendo nada com as crises, nem quero.
Continuemos o diagnóstico/retrato dos portugueses e do país:
o que é que não fizemos nestes quatro anos e devíamos ter feito? Refiro-me às
grandes reformas falhadas.
“Falam de tudo. Da moral, do comportamento, dos sentimentos,
das reacções, dos medos, das imperfeições, dos erros, das criancices,
ranzinzisses, chatices, mesmices, grandezas, feitos, espantos. Sobretudo falam
do comportamento e falam porque supõem saber. Mas não sabem, porque jamais
foram capazes de sentir como o outro sente. Se sentissem não falariam.” (Nelson
Rodrigues)
Se pudesse escrever uma carta a alguém, gritar alguma coisa
(um insulto, uma advertência, um conselho, uma declaração) seria o quê e a
quem?
“Liberté, Egalité, Fraternité”. Para quem me quiser ouvir.
Portugal vai ter duas eleições nos próximos meses. Os seus
amigos: diria que estão mais alheados da vida pública, mais participativos
depois dos anos de crise?
Tenho amigos em vários quadrantes políticos. Os meus amigos
votam. Eu só peço é que sejam coerentes entre o que votam e o que fazem na
vida. Não discuto política com os incoerentes.
Como é que explicaria a um jovem, que quer perceber o
essencial, as diferenças entre a esquerda e a direita?
Concordam com adopção de crianças por casais do mesmo sexo?
Concordam com a IVG por vontade da mulher SEM a obrigatoriedade de consultas
prévias de “aconselhamento”? Se concordam, NÃO votem na direita. A direita
neo-liberal que nos governa cheira a naftalina no que toca aos direitos LGBT e
das mulheres. Nada pode ser dado como adquirido e é preciso votar na esquerda
para garantir aquilo que tanto nos custou a alcançar.
O futuro passou a ser uma ameaça, evitar o perigo uma
divisa. É mesmo assim? Quando foi a última vez que usou a palavra esperança?
O futuro nunca é uma ameaça. O futuro é este instante, daqui
a bocadinho.
Matilde Campilho disse que a poesia não salva a vida, mas
que pode salvar o instante. O que é que salva o seu instante?
A Irene.
Férias de Verão: dê-me uma recordação das férias de quando
era criança. São um dos seus maiores tesouros?
O meu melhor tesouro é sempre o momento presente. No
entanto, foram tempos muito bons. Três meses de férias na praia. Com o mar
gelado e agitado. Lembro-me dos afogados. Acho que primeira imagem da morte que
tenho é a de um corpo deitado na areia. Todos os anos íamos comprar chapéus de
palha com uma fita azul escura numa chapelaria da rua das Janelas Verdes. Em
Setembro a fita estava toda manchada, com veios brancos, como o mármore. Era do
sal das cabeças molhadas. Lembro-me das minhas avós nas tardes do casino e da
maquineta dos amendoins. Do banheiro com as pernas muito castanhas, dos toldos,
do Sr. Franklin do café e do Sr. Alves da farmácia. Éramos besuntados depois da
praia com Caladril que parecia gelado de morango.
Pode fazer um curto auto-retrato?
Oh, isso daria um curto... circuito.
Publicado originalmente no Jornal de Negócios no Verão de
2015
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