20.10.15

O futuro nunca é uma ameaça. O futuro é este instante, daqui a bocadinho


Ana Vidigal (2015)
Ana Vidigal é artista plástica. A pintura, a colagem e a memória do que se passa em casa e na infância estão no centro da sua obra.


Um verso de Fernando Pessoa: “Navegar é preciso, viver não é preciso”. O problema é que viver é preciso. Quais são as dificuldades concretas do viver que acha mais preocupantes em Portugal?
O que acho preocupante em Portugal no ano de 2015 é que aqueles que beneficiaram de duas das melhores coisas da Revolução de Abril (a mobilidade social e o Estado Social) estejam agora no poder a desmantelar todas essas conquistas, impedindo, assim, que as gerações mais novas beneficiem do que eles beneficiaram e os fez chegar onde chegaram. E isso limita tudo e qualquer avanço, quer cultural quer económico.

Há 40 anos tivemos um Verão Quente, com o país a rasgar-se. Empresas e propriedades nacionalizadas, empresários a fugir para o Brasil. Que sequelas temos dessa fractura ideológica?
Eu tinha 15 anos e lembro-me muito bem do Verão Quente. Não foram só os empresários que fugiram para o Brasil. E se uns “fugiram”, outros, tal como agora, foram à procura de trabalho. Havia poucos profissionais liberais (não esquecer que só a classe mais elevada estudava e tinha acesso ao curso geral dos liceus e universidade). Muitos ficaram sem trabalho.

O que lembra do Verão de 75?
Esse verão foi passado, como sempre, na Praia Grande, em “clima democrático”. Cruzavam-se à beira mar o antigo ministro dos Negócios Estrangeiros de Marcello Caetano, Rui Patrício, e o recém chegado, exilado político, Mário Soares. No resto do país reinava a histeria. Em Almada, a 18 de Agosto, o primeiro ministro Vasco Gonçalves, num discurso acalorado (dizem as más línguas que a BBC o passou sem som, tal era a coreografia facial) exortava as massas contra o “grande capital”, os burgueses e a propriedade privada.
Nós, adolescentes, entre “amores de praia que se enterram na areia”, jogávamos ao prego, usávamos creme Nívea e óleo Johnson e lamentávamos os privilégios perdidos. Ninguém sabia da existência do buraco do ozono. E ninguém imaginava um JSD alucinado como primeiro ministro 40 anos depois.

Também há 40 anos, o país recebeu 700 mil retornados, Angola, Moçambique e Cabo Verde tornaram-se independentes. Viveu a situação de perto?
Estive no Aeroporto da Portela nesse Verão. Famílias inteiras, vindas das ex-colónias, viviam no aeroporto. O que mais me impressionou foi o cheiro. Malas amontoadas e pessoas desesperadas. Com um ar alucinado alguém procurava uma mala onde tinha o seu diploma de enfermeiro. Dizia: “Tenho de a encontrar, tenho de a encontrar”. As pessoas comiam e dormiam em cima de cobertores. A melhor aluna da minha turma do 7º ano era retornada. Morava numa casa ocupada, em frente ao Museu de Arte Antiga. A dividir os quartos havia cordas e lençóis. No Vale do Jamor viviam os timorenses.

Acha o discurso: “Eles são todos iguais!” uma consequência banal do estado a que isto chegou? Ou considera que é grave e abre espaço a populismos?
Demonstra muita falta de informação e como consequência abre espaço a populismos. É grave.

Oficialmente saímos da crise. Com cautelas, uma parte da população recuperou hábitos anteriores à chegada da Troika. À esquerda e sobretudo à direita, disse-se que Portugal tinha vivido acima das suas possibilidades e que era preciso aprender a viver de outra maneira. Aprendeu?
Viver acima das possibilidades? Sempre achei essa afirmação ridícula. As pessoas vivem a tentar suprimir as suas necessidades. E mesmo que isso fosse verdade, seria justificado por dezenas de anos de políticas paupérrimas ao nível da educação, da cultura e da saúde e de uma geração morta e estropiada numa guerra colonial. Eu não aprendo nada com as crises, nem quero.

Continuemos o diagnóstico/retrato dos portugueses e do país: o que é que não fizemos nestes quatro anos e devíamos ter feito? Refiro-me às grandes reformas falhadas.
“Falam de tudo. Da moral, do comportamento, dos sentimentos, das reacções, dos medos, das imperfeições, dos erros, das criancices, ranzinzisses, chatices, mesmices, grandezas, feitos, espantos. Sobretudo falam do comportamento e falam porque supõem saber. Mas não sabem, porque jamais foram capazes de sentir como o outro sente. Se sentissem não falariam.” (Nelson Rodrigues)

Se pudesse escrever uma carta a alguém, gritar alguma coisa (um insulto, uma advertência, um conselho, uma declaração) seria o quê e a quem?
“Liberté, Egalité, Fraternité”. Para quem me quiser ouvir.

Portugal vai ter duas eleições nos próximos meses. Os seus amigos: diria que estão mais alheados da vida pública, mais participativos depois dos anos de crise?
Tenho amigos em vários quadrantes políticos. Os meus amigos votam. Eu só peço é que sejam coerentes entre o que votam e o que fazem na vida. Não discuto política com os incoerentes.

Como é que explicaria a um jovem, que quer perceber o essencial, as diferenças entre a esquerda e a direita?
Concordam com adopção de crianças por casais do mesmo sexo? Concordam com a IVG por vontade da mulher SEM a obrigatoriedade de consultas prévias de “aconselhamento”? Se concordam, NÃO votem na direita. A direita neo-liberal que nos governa cheira a naftalina no que toca aos direitos LGBT e das mulheres. Nada pode ser dado como adquirido e é preciso votar na esquerda para garantir aquilo que tanto nos custou a alcançar.

O futuro passou a ser uma ameaça, evitar o perigo uma divisa. É mesmo assim? Quando foi a última vez que usou a palavra esperança?
O futuro nunca é uma ameaça. O futuro é este instante, daqui a bocadinho.

Matilde Campilho disse que a poesia não salva a vida, mas que pode salvar o instante. O que é que salva o seu instante?
A Irene.

Férias de Verão: dê-me uma recordação das férias de quando era criança. São um dos seus maiores tesouros?
O meu melhor tesouro é sempre o momento presente. No entanto, foram tempos muito bons. Três meses de férias na praia. Com o mar gelado e agitado. Lembro-me dos afogados. Acho que primeira imagem da morte que tenho é a de um corpo deitado na areia. Todos os anos íamos comprar chapéus de palha com uma fita azul escura numa chapelaria da rua das Janelas Verdes. Em Setembro a fita estava toda manchada, com veios brancos, como o mármore. Era do sal das cabeças molhadas. Lembro-me das minhas avós nas tardes do casino e da maquineta dos amendoins. Do banheiro com as pernas muito castanhas, dos toldos, do Sr. Franklin do café e do Sr. Alves da farmácia. Éramos besuntados depois da praia com Caladril que parecia gelado de morango.

Pode fazer um curto auto-retrato? 
Oh, isso daria um curto... circuito.


Publicado originalmente no Jornal de Negócios no Verão de 2015
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