3.2.13

Dimanche | (sobre a Secreta Nostalgia)


“Era uma vez uma ausência que andava em missão de viagem. Quando chegava a uma encruzilhada dava três voltas sobre si própria para perder por completo a noção de caminho por onde viera, atingindo assim com regularidade as regiões efémeras do esquecimento.
Depois regressava a casa”
Ana Hatherly, 72,  in 351 tisanas

Proeminência, vermelho (a que chamo encarnado porque assim me faz lembrar mais o sangue e as marcas do corpo) e  preto (que muitos pensam ser a única cor de nanquim).
Da primeira vez que vi pensei: é coisa de dentro. E sei que de dentro podia ser traição ou ciúme, faca no estômago ou noite de núpcias. Eram definitivamente recados de amor. Coisas.
Ela lá saberá o porquê dessas coisas, a mim só me interessa aceitar a missiva, guardar. Tudo pour le plaisir des yeux , sem vergonha. Também sem pudor.

Sempre senti a dualidade.

Depois reparei nas fitas que atam os desenhos, que os desenham antes da tinta. Às vezes fico na dúvida se lhes chamo desenhos, se lhes chamo pinturas. Ela lá saberá como chamar-lhe, ainda um dia lhe vou perguntar como gostará que eu os chame, mas isso agora não interessa, nem a mim nem a ela, penso eu. Desenhos encarnados e pretos nas paredes.
As paredes  fecham o lugar, e os lugares da casa funcionam como círculos tangentes (coisa de desenhos/pinturas  passadas) e a luz passa por quadrículas de vidro por cima das portas.
Uma vez, sentada na sala da parede preta (mas onde existe outra verde com um flamingo pintado) reparei que a portada era uma grelha pela qual eu via a outra grelha. A que ela pintou de verde clarinho.

A casa pareceu-me um imenso espelho de água

Nesse momento inclinou-se sobre a mesa arrancar uma fitas, fazendo conversa displicente mas eu vi-lhe o olhar vidrado e pensei: narciso - como todos os recados  todas as coisas de amor.
Mas ela acrescentou,  este espelho foi uma herança.

As coisas mudam de lugar – menos o elefante de louça  na prateleira mais alta – os dias passam elegantes e violentos, por vezes animalescos por vezes excêntricos sempre corajosos, como corajoso é o ato de martelar o buraco no meio da folha,  uma punição pelo prazer de fazer, uma espécie de  arranca corações e tendo a secreta nostalgia do prazer tirado a ferros.
Agora não me apetece dizer mais nada.
Em cima do banco estava um livro da LB. Quando lá voltei já não o vi.


“Havia dias assim, em que ela compreendia tão bem e via tanto que terminava numa embriaguez suave e tonta, quase ansiosa, como se as suas percepções sem pensamentos arrastassem-na em brilhante e doce turbilhão para onde, para onde...”
Clarice Lispector, in O Lustre, pag 64