“Era uma vez
uma ausência que andava em missão de viagem. Quando chegava a uma encruzilhada
dava três voltas sobre si própria para perder por completo a noção de caminho
por onde viera, atingindo assim com regularidade as regiões efémeras do
esquecimento.
Depois
regressava a casa”
Ana Hatherly, 72,
in 351 tisanas
Proeminência, vermelho (a que chamo encarnado porque
assim me faz lembrar mais o sangue e as marcas do corpo) e preto (que muitos pensam ser a única cor de
nanquim).
Da primeira vez que vi pensei: é coisa de dentro. E sei que de dentro podia ser traição ou ciúme, faca
no estômago ou noite de núpcias. Eram definitivamente recados de amor. Coisas.
Ela lá saberá o porquê dessas coisas, a mim só me
interessa aceitar a missiva, guardar. Tudo pour
le plaisir des yeux , sem vergonha. Também sem pudor.
Sempre senti a dualidade.
Depois reparei nas fitas que atam os desenhos, que os desenham antes da tinta. Às vezes fico na
dúvida se lhes chamo desenhos, se lhes chamo pinturas. Ela lá saberá como
chamar-lhe, ainda um dia lhe vou perguntar como gostará que eu os chame, mas
isso agora não interessa, nem a mim nem a ela, penso eu. Desenhos encarnados e pretos nas
paredes.
As paredes
fecham o lugar, e os lugares da casa funcionam como círculos tangentes
(coisa de desenhos/pinturas passadas) e
a luz passa por quadrículas de vidro por cima das portas.
Uma vez, sentada na sala da parede preta (mas
onde existe outra verde com um flamingo pintado) reparei que a portada era uma grelha
pela qual eu via a outra grelha. A que ela pintou de verde clarinho.
A casa pareceu-me um imenso espelho de água
Nesse momento inclinou-se sobre a mesa arrancar uma
fitas, fazendo conversa displicente mas eu vi-lhe o olhar vidrado e pensei:
narciso - como todos os recados todas as
coisas de amor.
Mas ela acrescentou, este espelho foi uma herança.
As coisas mudam de lugar – menos o elefante de
louça na prateleira mais alta – os dias
passam elegantes e violentos, por vezes animalescos por vezes excêntricos
sempre corajosos, como corajoso é o ato de martelar o buraco no meio da
folha, uma punição pelo prazer de fazer,
uma espécie de arranca corações e tendo a secreta nostalgia do prazer tirado a
ferros.
Agora não me apetece dizer mais nada.
Em cima do banco estava um livro da LB. Quando lá
voltei já não o vi.
“Havia dias
assim, em que ela compreendia tão bem e via tanto que terminava numa embriaguez
suave e tonta, quase ansiosa, como se as suas percepções sem pensamentos
arrastassem-na em brilhante e doce turbilhão para onde, para onde...”
Clarice Lispector, in O Lustre, pag 64