“All of us (artists, critics, curators, historians, viewers) need some narrative to focus our present practices – situated stories, not grands récits.”
Hal Foster, Design and Crime
“We live in the wake not only of modernist painting and sculpture but of postmodernist deconstructions of these forms as well, in the wake not only of the prewar avant-gardes but of the postwar neo-avantgardes as well”
Hal Foster, Design and Crime
Suspeita de gripe A? Nada para fazer. Isolada em casa, Ana Vidigal faz uns vídeos para o Facebook. Auto-retratos em frente a um computador. Performances descontraídas. Os títulos amplificam a acção. Colagens simbólicas. Readymades. Sobreposições metafóricas. Pequenas narrativas sobre o quotidiano. No Youtube, outros vídeos exploram relações poéticas absurdas, investem sobre a estranheza dos pequenos fenómenos da vida. Acção!
Na recente antológica de Ana Vidigal, “Menina Limpa, Menina Suja”, comissariada por Isabel Carlos, no Centro de Arte Moderna da Fundação Gulbenkian (Julho 2010), uma obra em vídeo dava início à exposição – “Domingo à Tarde”. Datado de 2000, esse era o único vídeo dessa exposição e, segundo Isabel Carlos, “funciona como uma chave para toda a obra, dado que revela a prática, a metodologia e o processo de Vidigal”, mais conhecida pelas suas pinturas, colagens, e agora, também, pelas suas instalações.
Durante mais de 30 anos, a artista tem explorado criticamente a memória, a história, as imagens que nos formaram, os estereótipos do "feminino", as implicações simbólicas do decorativo e, em última análise, as qualidades estabelecidas e enformadoras daquilo que se convencionou chamar de "prática artística feminina", dando-nos, como refere Isabel Carlos, "uma espécie de retrato iconográfico dos últimos 30 anos de uma democracia ainda atravessada por muitos anacronismos, moralismos e assimetrias". Ponto de partida, Domingo à Tarde, um vídeo realizado com uma câmara de filmar doméstica, “regista a artista a operar uma série de acções sobre o seu próprio rosto: primeiro cobre-o de fita-cola dupla; adiciona-lhe pioneses, plasticina, enclausura-o num saco de plástico transparente; finalmente, apresenta-o reflectido numa superfície espelhada que o deforma e transfigura com a ajuda das mãos e de sucessivos esgares e caretas” (Isabel Carlos, “Menina limpa, Menina Suja”).
Comissariada por Susana Pomba, “CINE MAR(A)VIL(H)A” é uma sessão especial de projecção, em loop, de vários vídeos realizados por Ana Vidigal, de forma descomprometida e regular, para duas plataformas virtuais que introduziram óbvias mudanças na forma como nos relacionamos com a tecnologia, com a informação, com o arquivo e com o mundo: Facebook (criado em 2004) e Youtube (criado em 2005). Segundo Susana Pomba, “descobrimos que esses vídeos, feitos para a internet, cheios de humor e reflexão social e política, têm as mesmas qualidades e preocupações que muitos dos trabalhos da autora e informam a nossa reflexão acerca do seu trabalho. A imagem em movimento parece ter começado a fazer parte dos suportes utilizados pela artista, depois da obra ‘Domingo à Tarde’.”
É no computador, mais precisamente no ecrã deste objecto ambíguo e omnipresente, que nos habituámos a ver os vídeos que Ana Vidigal passou a “postar” (publicar) com regularidade, desde há uns anos, no Youtube, no Facebook e no seu blogue pessoal. Diários videográficos? Cada vídeo ou objecto deste tipo assume a experiência ou a forma de uma cápsula que, ao ser lançada no ciberespaço, sobrevive para lá da sua realidade material, temporal e espacial inicial. A artista “partilha”, “publica” e “carrega”. No essencial, estes vídeos remetem para uma vivência imediata da realidade do nosso tempo, reinserindo ou adaptando, de forma quase recreativa e criticamente ligeira, alguns dos pressupostos de experimentação das vanguardas, ou das neovanguardas, aos contextos tecnológicos das sociedades actuais.
Numa recente entrevista, amplamente difundida nas redes sociais, Carolyn Christov-Bakargiev, directora artística da próxima Documenta 13, em Kassel, sublinhava, entre outras ideias (a relevância do arquivo), a importância, sobretudo, do Youtube para uma certa mudança do estatuto da imagem e para a recuperação de um certo espírito ou estética “povera” (“vídeo povero”), em oposição a um virtuosismo técnico que, em muitos casos, distrai-nos do essencial. Bastante mais polémico, o Facebook tem estado no centro de inúmeras discussões, mais e menos académicas, em torno da temática das redes sociais, entre ferozes opositores (perigos da alienação e reificação) e fervorosos adeptos dos novos meios de relação, partilha e interacção.
Para Hans Belting, “os novos meios criaram um público em que cada um está sozinho consigo mesmo” (A verdadeira Imagem). A verdade é que a destabilização do conceito arte e a sua expansão para outros domínios e valências não é uma novidade, mesmo quando falamos de novas plataformas de difusão. Muitos anos antes destas possibilidades digitais, Adorno, em “Aesthetic Theory”, sublinhava as suas contradições, ou seja, “it is self-evident that nothing concerning art is self-evident anymore, not its inner life, not its relation to the word, not even its right to exist. The forfeiture of what could be done spontaneously or unproblematically has not been compensated for by the open infinitude of new possibilities that reflection confronts. In many ways, expansion appears as contraction...”. Um regresso às origens?
Sensibilidade feminina
São inúmeras as referências que Ana Vidigal utiliza no seu processo videográfico. Pequenos objectos ou produtos (Laca Sunslik, esfregão Scotch-Brite, caldos Knorr, varinha-mágica, margarina Planta, Ben-U-Ron, chocolates de Natal...), músicas, desenhos animados, personagens infantis, política, religião, sexualidade, épocas festivas, antigos anúncios de publicidade (“jingle”), são desconstruídos em divertidas apropriações. A artista faz-se autorepresentar como sujeito de experiência, sobretudo na série de vídeos para o Facebook. Os óculos de ver, com que geralmente aparece, reflectem a luz do ecrã e denunciam “os modos de fazer” estes vídeos. Há um início e um fim, sem qualquer edição intermédia. No Youtube, por sua vez, Ana Vidigal, motivada por aspectos do quotidiano, faz emergir uma curiosa poética nos limites do absurdo, limitando-se, por vezes, a fixar ou a constatar contradições, sobreposições, diálogos, práticas de ateliê, fenómenos, intervenções na paisagem e curiosidades. Assume uma enigmática e ambígua posição discursiva que varia entre o implícito e o explícito, sem uma direcção assumida mas com alusões cinematográficas, literárias, musicais... que revelam o exótico nos mais pequenos detalhes, gestos e olhares.
Ou seja, em todos estes vídeos há uma subjectividade evidente que explora e partilha diferentes elementos do sensível. Para Jacques Rancière “a ‘partilha do sensível’ designa o sistema de evidências sensíveis que dá a ver, em simultâneo, a existência de um comum e os recortes que definem, no seio desse comum, os lugares e as partes respectivas.” As obras de Ana Vidigal operam sobre o comum e são, por isso mesmo, sem parecerem num qualquer imediato, politizadas, ou seja, partilham da vontade de “perturbar a relação entre o visível, o dizível e o pensável, sem ter de fazer passar nenhuma mensagem” - definição do “sonho da obra política adequada”, segundo J. Rancière. À semelhança do que nos diz o filósofo francês, na maioria das suas obras, Ana Vidigal “desfaz um tecido sensível – uma determinada ordem de relações entre o visível e as significações - e constitui outros tecidos sensíveis”. Ou estabelece uma “arqueologia do tempo presente” (Ana Hatherly)? Mas o que é o quotidiano?
O quotidiano, nas suas diferentes formulações, estratificações instantâneas do real, aparece-nos nas obras de vídeo para internet, realizadas por Vidigal, como campo de trabalho privilegiado. A artista produz objectos videográficos aparentemente incongruentes, alicerçados numa prazeirosa e excêntrica estratégia crítica, e realizados a partir de perturbantes deslocamentos ou dispersões que sublinham, de um modo profundamente irónico, conteúdos visuais, tradições e contextos sociais muito específicos. Ao inscrever uma certa estética que procura fixar, sem qualquer deslumbre tecnológico, a imediatez do captado, o registo da performance, quase “live” e docemente corrosivo, Ana Vidigal explora, através da auto-representação, da auto-referencialidade, da colagem e da sobreposição, como refere Isabel Carlos, “essa outra dimensão mais espacial e, no limite, mais experimental, ou, melhor dito, mais livre de cânones e de constrangimentos formais”, sem plinto e sem moldura. Através de originais intersecções irónicas, os vídeos de Ana Vidigal desmontam narrativas e imagens do (in)consciente colectivo, a partir de experiências e percepções que se alicerçam na própria biografia e corpo/rosto da artista (película onde se inscrevem progressivamente as leis e os costumes – discursos dominantes - da sociedade).
A distorção ou a elasticidade dos significados, a curta duração dos vídeos, a total economia de meios e gestos (mordazes) implicados em cada acção - a complementar relação entre título e obra e a atitude levemente provocatória - são garantia de uma ligação directa, quase lúdica, entre artista e público. São gestos de rebelião que actuam sobre um sistema de signos. Estamos perante uma subjectividade entediada e inconformada com a crescente e contagiante anemia crítica. O tom parodiante revela o mal-estar efervescente, indiciando aspectos ou questões sociais e culturais fracturantes como matéria-prima essencial. Estes vídeos, ao contrário dos vídeos seminais dos anos 60 e 70, não desafiam as instituições tradicionais da arte mas continuam a exigir do espectador uma atenção comprometida. São “postados”, “partilhados” e “carregados”, como já referimos. Existem numa rede, num arquivo que os relaciona com outros semelhantes ou diferentes, por vezes complementares e amplificadores de novos sentidos e direcções.
Afinidades
Segundo Marita Sturken, no texto “Olhando para trás. Arte do vídeo nos anos sessenta e setenta” (Circa 1968), nos anos 60 e 70, havia o desejo (ilusório) de ver o vídeo como “um meio sem história, pré-história ou antepassados”, ou seja, “foi muitas vezes afirmado que o vídeo e a performance constituíam suportes principalmente para as mulheres artistas nos anos 70 precisamente porque não transportavam a herança de domínio masculino da escultura e da pintura”. Actualmente, apesar dessa posição historiográfica já não ser aceitável, não deixa de ser curioso constatar que para Ana Vidigal, as principais influências ou referências vêm, sobretudo, do trabalho desenvolvido por mulheres artistas no âmbito do vídeo e da performance. Foram fundamentais para o seu trabalho (pintura, colagem, instalação) e enformam, certamente, este tipo de exercícios descontraídos e efémeros que a artista passou a registar com regularidade desde há uns anos, como forma de ocupar o tempo. Martha Rosler, Gina Pane, Sophie Calle, Monthy Python, Gabriel Abrantes, entre outros, são alguns dos nomes que compõem uma ampla esfera de afinidades que Vidigal foi preenchendo ao longo da sua vida, desde as viagens familiares que fazia durante a sua juventude pela Europa até à actualidade. Destes nomes, valoriza, sobretudo a crueza investida por eles nas suas obras e a capacidade de fazerem muito com pouco. Quando falamos sobre as suas motivações, os seus processos e os seus interesses aparecem-nos os objectos apropriados, os adereços, o espaço da casa, do ateliê, o bairro, a vista da janela, as viagens, as montagens de exposições, os amigos, as notícias, a publicidade, a literatura...
Estes vídeos descontraídos, sem pretensões, como sublinha tantas vezes a artista, em conversa, reflectem, uma vez mais, no longo percurso de Ana Vidigal, as possibilidades criativas do tédio associadas a uma constante vontade de produzir fora do espectro estrito da pintura ou do ateliê, motivando-a a descobrir novos modos de produção, novas técnicas e suportes, novas formas complementares de estar na prática artística. Assim, o medium vídeo é redescoberto num contexto digital, onde proliferam interfaces variados e outros dispositivos de relação com a obra, com as imagens, com as performances construídas pela artista. Mas, como refere Hal Foster, “however digital in operation, this new world is still visual in appearence, as its language of ‘screens’, ‘windows’, and ‘interfaces’ underscores. The screen remains the dominant modality of the electronic archive, but what kind of image is it exactly? Clearly it differs radically from the pictorial tableau of painting, but it also diverges from the projected image of cinema as well as the broadcast image of television. (In some ways it retains the problematic aspects of both mediums: the fascination of viewers as in film, the separation of viewers as in television).” (Design and Crime).
Afinal, a Pintura aqui tão perto.
Pedro Faro
Rua Augusta, Setembro 2011