A história subjacente a estes trabalhos conta-se rapidamente. Ana Vidigal acompanhou há tempos a doença de uma pessoa próxima, e passava as horas de espera no hospital a realizar paciências nas folhas de jornais e revistas encontrados nas salas para acompanhantes de doentes. Esses desenhos, frequentemente estereotipados e sem qualidade artística notável, foram depois trazidos para o atelier, ampliados, intervencionados e transformados enfim no conjunto de pinturas que agora podemos ver na galeria 111 de Lisboa. Algumas destas peças estiveram já na representação portuguesa à Bienal de Sharjah, nos Emirados Árabes Unidos, ainda este ano. Mas esta é a primeira vez que o público pode vê-las em Portugal, juntamente com a contextualização que a série de que fazem parte lhes proporciona.
Como sucede na obra desta artista, todas as obras procedem da apropriação de imagens e objectos pré-existentes e que, por uma razão pessoal, convocam memórias privadas ou sociais relativas à vida de Ana Vidigal. Em séries mais antigas a artista realizou um inventário visual de imagens e modelos que a sociedade portuguesa dos anos 60 (a época do seu nascimento) atribuía à mulher e à rapariga. Eram obras que, apropriando-se do colorido próprio da ilustração da época e sobrepondo-lhe pintura aplicada segundo padrões geométricos, conjugavam a crítica dessa mesma imagem com uma prática eufórica e corrosiva da pintura. Ana Vidigal nunca se coibiu, e bem, de conjugar esta abordagem sociológica dos papéis atribuídos ao género feminino com uma ironia mordaz e a reflexão sobre a sua própria biografia. Ao mesmo tempo, em momentos pontuais realizou instalações tridimensionais que obedeciam ao mesmo processo de trabalho: captação de objectos social e biograficamente significantes, e desvio da sua função primeira através da ironia e do jogo de palavras. "O Véu da Noiva", obra pertencente à Fundação Manuel de Brito, é um bom exemplo do que acabámos de referir.
Com o tempo, contudo, a sua obra depurou-se de uma certa exuberância decorativa e ganhou em profundidade e carga simbólica. Os processos mantêm-se. Mas - e um Project room na feira Arte Lisboa de 2007 foi um marco neste percurso de maturidade crescente - os temas tornaram-se mais incisivos, a liberdade com que matérias e suportes eram utilizados aumentou, e houve uma depuração cromática e formal que se tornou óbvia. Nesse projecto de há dois anos, a artista recriou o seu quarto de infância, e colocou-o em paralelo com o quarto onde o pai viveu durante parte da guerra colonial. No caso desta exposição, as pinturas, ao invés de se construírem sobre tela e de se servirem da cor sem reservas, são feitas a partir de ampliações de grande formato das imagens de jogos de jornal já mencionadas, das quais guardam a contenção cromática e formal. Notam-se todas as impurezas do papel de baixa qualidade e da tinta de impressão. Mas, por cima destes labirintos e quebra-cabeças de fácil resolução, que nunca demoram mais do que uns minutos a resolver, Vidigal sobrepõe pintura, apaga linhas, cria novas formas, acentua ou retira frases de instruções, acrescentando-lhes sentido onde elas já o tinham perdido. Em "Pensas que o sexo terá importância?", o título de uma das obras presentes, por exemplo, o labirinto que permitiria a um esquilo alcançar as avelãs é apagado por pintura, sobre a qual se desenha a silhueta de um napperon de papel: como se a artista nos afirmasse que os labirintos verdadeiros são os da criação artística e os das relações humanas, ficando por demonstrar que uns não são exactamente coincidentes com os outros.
A eficácia da obra de Ana Vidigal vem desta ligação permanente entre o social e o pessoal. Toda a sua obra procede da sua vida, mas, no seu entender, a sua vida é também acção e intervenção. A galeria editou, para esta ocasião, um livro de apresentação da obra da artista realizada desde 2005, onde se inclui uma excelente entrevista contextualizadora feita por Susana Pomba.