14.8.10

A produção paralela de Ana Vidigal* por Ruth Rosengarten

Pintura e produção paralela

Em Abril de 1997, Ana Vidigal deu a uma exposição individual, que teve lugar no Museu Nogueira da Silva, em Braga, o título de Vícios privados, Públicas virtudes. A binaridade clara e divisiva desta designação reflectia-se na disposição espacial da exposição: as «públicas virtudes» eram mostradas na entrada, e os «vícios privados» num quarto interior fechado. Descendentes bem comportadas do modernismo tardio, as Públicas virtudes são colagens sobre tela quase educadamente estruturadas, com toda a compostura de um rosto público: as suas superfícies muito preenchidas não dão qualquer sinal de interioridade. O seu formato é pequeno, quadrado, compacto; como em todo o seu trabalho bidimensional, a artista vai buscar recursos formais a um léxico tardo-cubista de motivos altamente estruturados, criando uma tensão entre a pouca profundidade do espaço pictural e a realidade palpável da superfície muito trabalhada. É como se estes trabalhos fossem todos feitos de acordo com um plano oficial, retirado da herança do modernismo. Nunca é permitido à sua musicalidade negar a profunda dívida dos mesmos para com as estruturas espaciais e estratégias compositivas da colagem cubista.

Não surpreende que os «vícios privados» sejam um exemplo daquilo a que a artista chama o seu «trabalho paralelo». Neles, as exigências formais da composição bidimensional dão lugar à assemblage ou bricolage, ou simplesmente à descontextualização e recontextualização de objectos encontrados. Toda a gente sabe que os vícios são mais divertidos que as virtudes, e nos Vícios privados Vidigal torna materialmente explícita uma sensação de prazer, que, num dado registo, vem da feitura desses objectos espirituosos e sensuais. Mas existe aqui um outro prazer — um prazer mais transgressor, pois nestes «vícios privados» Vidigal representa o papel da libertina que se opõe às imposições puritanas do modernismo. Apesar de estes trabalhos paralelos nunca se libertarem da sua dívida para com as lições formais do modernismo, o deleite que Ana Vidigal retira dos elementos efémeros da cultura popular ou (especialmente) de massas — banda desenhada, brinquedos, anúncios publicitários, ficção popular — mostra que o seu uso de objectos reciclados não é apenas um expediente formal ou decorativo; que tanto a forma como o conteúdo dos objectos encontrados são intrínsecos à construção da obra, bem como às possíveis leituras da mesma. Somos assim confrontados com a cultura de massas enquanto Outro do modernismo — um Outro que, como veremos, é claramente feminizado.

Contudo, se bem que o trabalho de Vidigal tenha sempre abrangido opostos — o público e o privado, o encontrado e o feito — o seu desejo de catalogar e classificar a sua obra dentro de dois géneros discretos que chama «pintura» e «trabalho paralelo» (e aos quais poderíamos chamar uma homenagem ao modernismo, no caso do primeiro, e uma homenagem à cultura de massas, no segundo) mostra a continuidade que marca a sua produção. Públicos e privados, legítimos e marginais, todos estes impulsos nascem, com efeito, de um processo contínuo. Mas, apesar de existir uma continuidade iconográfica e metodológica no trabalho de Vidigal, o facto de ela o dividir em duas categorias autónomas não deixa de ser útil — e pertinente, quanto mais não seja por ela assim o entender: por que razão precisará, ou necessitará, ela de tal clareza taxonómica? Se os dois géneros se fundem no centro, revelam, nas suas margens, divergências de intenção e abordagem em termos de narrativa, legibilidade e recepção.

Contudo, como nasce da tendência inata de Vidigal para a ordem e a organização conceptual, a divisão em si mantém-se flexível e contingente. Além de brinquedos e objectos embrulhados, a exposição Private Collection, que teve lugar na Galeria 111, no Porto, em 2001, incluía pinturas de duas figuras gémeas de banda desenhada: a «menina limpa» e a «menina suja» — cada uma dessas meninas agia como alter-ego, ou como a consciência (boa ou má) da outra. Estas peças, apesar de serem aparentemente «pinturas», eram consideradas por Vidigal parte do seu «trabalho paralelo». Contudo, peças semelhantes a estas, produzidas posteriormente, acabaram por ser incluídas na categoria de pintura. Vidigal explica que esta divisão, aparentemente arbitrária, possui uma lógica contextual, devendo-se ao facto de que, no ano 2000, elementos tão abertamente figurativos não eram presenças habituais no seu léxico de formas abstractas; mais tarde, à medida que se ia habituando a incorporar este tipo de elementos gráficos figurativos, permitiu que este tipo de figuração fosse reclassificada como pintura, perdendo assim o estatuto «à margem da lei» de produção paralela2.

2 Correspondência por e-mail com a autora, Junho de 2003.

A continuidade de procedimento que liga as duas formas de produção de Ana Vidigal é constituída pela linguagem e prática da colagem, que estabelece o alicerce do seu trabalho: aquilo a que chama pintura inclui sempre um elemento forte e manifesto de corte e colagem, ou então um seu equivalente metafórico, em composições que são sempre construídas de forma aditiva. Mesmo quando desenhados ou pintados directamente na tela ou no papel, são sempre imagens gráficas apropriadas e facilmente reconhecíveis, traçadas com recurso a uma projecção de diapositivo ou epidiascópica, que funciona, a nível metodológico e formal, como um elemento de colagem. É que Vidigal é uma ladra, uma respigadeira. Desde o início que o seu trabalho se baseia na sua avidez e olho apurado para o rico potencial físico e conotativo dos materiais encontrados.

Tempo perdido e tempo recuperado

Materiais encontrados bidimensionais (materiais, por outras palavras, que podem, caso necessário, manter a planura e continuidade da superfície pintada) — papéis chineses e indianos, serpentinas, bandas desenhadas, fitas adesivas, individuais de vinil, padrões de costura, etiquetas, desenhos infantis (dos quais a sobrinha de Vidigal tem sido uma fonte fértil), bem como frases pilhadas de livros, filmes, poemas ou bandas desenhadas — são deslocados do seu contexto de origem e inseridos em ambos os tipos de produção: pintura e trabalho paralelo. A colagem afirma materialmente — por outras palavras, evidencia através das marcas deixadas por cortes, colagens e pinturas — os processos, e logo o tempo, da sua produção. Consequentemente, os materiais, tanto nas pinturas como no trabalho paralelo, afirmam-se como mate-riais pelo prazer hedonístico e intelectual que provocam, sem deixarem de ser vestígios e evocações de um passado vivido. Concomitantemente, em ambos os tipos de trabalho, a materialidade é simultaneamente o vestígio (a memória) de um acontecimento anterior à realização da peça, e a marca de uma acção exercida sobre a própria peça. O efeito do tempo é, contudo, muito mais manifesto na produção paralela: tais peças estão saturadas de passado, de um reconhecimento agridoce do tempo como elemento comum da memória e do esquecimento.

Além da papelaria e da retrosaria, Vidigal acrescentou a feira de velharias e o sótão às suas fontes de matéria-prima. Da mesma forma que para artistas como Christian Boltanski ou Ilya Kabakov, a feira de velharias tornou-se, para Ana Vidigal, o melhor tipo de loja de materiais artísticos: um lugar onde o passado anónimo de terceiros pode ser capturado e transformado num passado pessoal. O sótão, por outro lado, é um local mais pessoal para encontrar ou guardar tesouros: um monumento privado à história de uma família em particular, que é contada através de objectos condenados a um limbo entre a funcionalidade e o refugo. Estes objectos fetichizam-se com o tempo, tornando-se metonímias do próprio passado. Para Ana Vidigal, este sótão é ao mesmo tempo físico e metafórico — um local e uma obsessão. É um espaço cheio de histórias: o passado faz-se marca, e marca faz-se narrativa.

A velha casa da família em Alverca, entretanto vendida mas outrora pertença da bisavó da artista, tinha-se tornado num depósito de velharias para várias gerações, um local onde objectos sem uso imediato eram armazenados ou escondidos. Esquecidos e, mais tarde, deitados fora ou nostalgicamente resgatados, estes objectos narram as histórias sobrepostas e entretecidas de membros da família agora dispersos; hábitos, práticas e obsessões avassaladas por novos desejos, novas práticas e modas, tecnologias mais recentes. Constituem o resíduo de narrativas de progresso. Repositório do tesouro da família, o sótão de Alverca continha os recursos a partir dos quais Vidigal resgatou ou mesmo (re)inventou narrativas perdidas da infância. Enquanto esse tipo de narração nostálgica é frequentemente ficcionalizado, ou semi-ficcionalizado, no seu trabalho, uma série recente, intitulada Casinhas (2002) torna clara a importância do sótão da velha quinta de Alverca, expondo o que na maior parte da obra é apenas implícito: a importância para Ana Vidigal de uma narração autobiográfica como o ímpeto que traz uma peça à existência.

Os objectos recuperados e reciclados sobre os quais as peças de Casinhas foram elaboradas eram uma série de miniaturas de casas feitas de caixas de sapatos, que Vidigal comprou a um sapateiro durante umas férias na ilha de Porto Santo. O sapateiro tinha-as feito para enfeitar um enorme presépio, emblema e decoração tradicional das festividades natalícias dessa ilha e da Madeira. A artista guardou estas casas no seu atelier durante dois anos, sem saber que uso lhes dar: apesar de serem suficientemente encantadoras por si sós, Vidigal achava-as mudas; não conseguia estabelecer uma ligação pessoal ou emocional com elas. «Um dia», observou ela recentemente, «naqueles dias, de excesso de nostalgia, comecei a pensar nos locais geográficos que tinham desaparecido da minha vida e lembrei-me da casa de Alverca. Coisa que evito, porque me deprime. Mas de repente descobri um elo emocional com aquelas casinhas. Eram A Casa, a casa que eu perdi. A partir daí já conheces o processo. A casa torna-se Eu…»3 Ao apropriar-se das casas — envolvendo-as em fio, cobrindo-as de etiquetas, embutindo-as em roupas de bebé — redescobre uma personalidade que o tempo lentamente apagara. Os objectos tornam-se metáforas do eu; um palimpsesto de momentos passados é assim descoberto e decifrado no processo de trabalho. Contudo, o que é trazido a público não é uma narração autobiográfica diarística ou literal, mas sim a construção de uma narrativa pessoal a partir de objectos que evocam o corpo perdido da criança enterrada na adulta e a casca vazia de um lar que já não existe.

3 Correspondência por e-mail com a autora, Junho de 2003.

Um processo semelhante de narração autobiográfica nostálgica tivera lugar numa peça mais antiga, Penélope (2000): uma cama de casal coberta com uma colcha feita de sacos de plástico transparente. Os sacos contêm cartas retiradas da correspondência mantida entre a mãe e o pai de Vidigal durante os dois anos que este último esteve colocado na Guiné durante a Guerra Colonial. Penélope, que ia fazendo e desfazendo o seu trabalho de tecelagem como forma de frustrar os pretendentes enquanto esperava o regresso de Ulisses, tem sido um símbolo fértil para várias mulheres (a obra de Janine Antoni e Louise Bourgeois, por exemplo, sugere as figuras míticas de Aracne e Penélope). A relação mítica existente entre actividades como tecelagem, bordados e narração de histórias em meios femininos manifesta-se etimologicamente na relação entre «texto» e «têxtil» e linguisticamente nas analogias entre «tecer» e «contar» (tecer uma história): a artista australiana Narelle Jubelin — cujo trabalho é uma forma de narração subtil — tornou explícita esta analogia em peças onde utiliza bordados e/ou textos. Na Penélope de Vidigal, o fio ininterrupto de comunicação verbal através do qual a história dos seus progenitores é contada materializa-se por meio da inclusão das cartas. A cama, como espaço de sono e sonho, de amor e ausência, de nascimento e morte, torna-se igualmente o mais tabu dos espaços — o local da intimidade dos pais: o local onde os progenitores, mesmo separados pela geografia e pela guerra, trocam palavras. As cartas mantêm-se seladas em plástico, tentadoramente fora do alcance. O elo autobiográfico é evidente, o segredo íntimo quase se faz público… mas só para ser em seguida — como é próprio do tabu — negado.

Na sua actividade de recuperar e recolher vestígios materiais, o narrador nostálgico ganha algo de arqueólogo ou antropólogo. Enquanto que o antropólogo poderia desenvolver no seu trabalho o conceito do «exótico», sabemos que, para que tal tenha lugar, são precisos antes de mais nada separação e distanciamento. Os conceitos de «terra natal» e «estrangeiro» são mutuamente provocadores: cada um deles existe apenas em tensão dialéctica com o outro. O exótico vem, então, definir os limites com que o eu se defronta: é a diferença que permite ao familiar situar-se. Este distanciamento ou diferenciação pode ser geográfico, mas pode também ser temporal. O arqueólogo descobre e revela, através de marcas e pormenores, de pistas sintomáticas, a estranheza e segredos de tempos passados. Ao recolher vestígios materiais — objectos que são rastos mnésicos de acontecimentos e actividades sempre, por definição, localizados no passado — Vidigal transforma-se numa espécie de antropóloga ou arqueóloga do eu. O eu é um repositório de tesouros enterrados que, por serem inacessíveis, transformam o sujeito no seu próprio Outro; a estranheza insere-se no familiar. (O fenómeno do sujeito se ver a si próprio como Outro não é estranho ao discurso da psicanálise. Freud e Lacan argumentariam que o eu não poderia reconhecer-se sem reconhecer que contém essa mesma estranheza.) Por meio de inscrições à superfície e acontecimentos casuais — a madalena de Proust é o mais famoso exemplo literário desse tipo de libertação do passado — o passado enterrado ou recalcado vem à luz, da mesma forma que um sintoma psicológico poderia expediente e contingentemente pousar numa gama disponível de manifestações fisiológicas.

Além de obcecada com vestígios, Vidigal é também uma coleccionadora de lembranças. A lembrança — na forma de espécime ou troféu — representa a apropriação da distância: nasce de uma conquista pessoal do espaço (exterior ou interior), mas pressupõe igualmente um desejo de controlar o tempo, de transformar acontecimentos passados numa narrativa presente: por outras palavras, de fazer memórias. A lógica melancólica da lembrança funciona no trabalho de Vidigal, apesar do sentido de humor e do espírito travesso da artista. Particularmente na sua produção paralela, onde mordacidade espirituosa e nostalgia formam um par surpreendentemente compatível, os objectos de Vidigal dão sinais abafados de anseio e comunicam uma impressão de perda — de tempo gasto. Vidigal escreve num dos seus cadernos a seguinte citação de Ana Hatherly, retirada de Tisanas: «O que pode representar perder ou ganhar tempo? Acha que isso é possível? Acha que o tempo pode outra coisa que não seja perder-se?». Tal como a fotografia que, na sucinta formulação de Barthes, nos recorda que a morte está no futuro, a lembrança é um testemunho de mortalidade. Uma folha ou flor seca, um lenço com um vago odor a perfume antigo, uma carta há muito enviada (ou não), os vestígios sujos e partidos de brincadeiras infantis — tudo isso, apesar de cuidadosamente preservado para criar a ilusão da paragem do tempo, só consegue recordar-nos a inelutável passagem deste.

Como mostrou a crítica literária Susan Stewart, a anterioridade da lembrança — o facto de ter a sua proveniência não só noutro lugar, como também noutro tempo — é muitas vezes um aspecto essencial da sua capacidade de autenticação. Sabemos que o acontecimento teve lugar porque possuímos os seus vestígios materiais. Concomitantemente, os vestígios de um tempo anterior são ao mesmo tempo familiares e estranhos, simultaneamente «autênticos» e, por intermédio da distância temporal, «exóticos». (Se o passado é, como na famosa frase de L.P. Hartley, um outro país, a criança que outrora existiu é simultaneamente eu e outro.) Ao provocarem ao mesmo tempo reconhecimento e afastamento, as lembranças permitem ao que é visível na superfície «revelar uma profunda interioridade através da narrativa»4. Tal como o sintoma, a lembrança é um objecto que se esforça por alcançar a realização narrativa.

4 Susan Stewart, On longing: narratives of the miniature, the gigantic, the souvenir, the collection, Durham e Londres: Duke University Press, 1993, p. 146.

Modernismo e cultura de massas

A primeira admissão pública, por parte de Ana Vidigal, do seu namorisco marginal, fora dos limites formais e «legítimos» da bidimensionalidade que ela identifica com a pintura, teve lugar numa exposição sem título, apresentada na Galeria 111, de Lisboa, em 1994. Os materiais que reuniu para fazer estes trabalhos pequenos e sedutoramente tácteis sugerem uma criança à solta numa papelaria ou retrosaria das antigas (os próprios prazeres dessa actividade evocam um tempo passado, um tempo recordado, antes da uniformização da aparência e mercadoria das lojas): botões, grampos, fitas de embrulho, cantos de fotografias, etiquetas, alfinetes de ama, colchetes, moldes de vestidos, materiais para acondicionar embrulhos, e uma variedade de papéis lisos ou com padrões. Dobrados, presos com alfinetes, fita adesiva ou grampos, cosidos, laminados, selados em sacos de plástico como se fossem amostras, os materiais encontrados parecem quase pairar acima das folhas de papel a que estão fisicamente presos. O formato das folhas estabelece os parâmetros espaciais que enquadram cada conjunto de materiais, separando-o de um mundo exterior cheio de outros objectos fabricados. Esta característica formal mantém-se em trabalhos mais recentes, como Casinhas (2002) e Pastelarias (2002).

Estes conjuntos de materiais mantêm uma disposição formal fortemente tectónica. Apesar da sua plasticidade, afirmam paradoxalmente os valores adquiridos da composição pictural: equilíbrio, diversidade, organização bidimensional. A sua insistência no quadrado e no círculo é sinal de um amor pela simetria que entra em conflito com uma tendência, igualmente persistente, para o irregular e o assimétrico: a disputa entre os dois princípios subjaz à noção inata de composição, presente em toda a obra de Ana Vidigal. Esta organização tectónica torna-se ainda mais enfática numa série de trabalhos sobre papel em formato maior, Sete pecados mortais (1995): nela, a anterior impressão de abundância e diversidade dá lugar a um picturalismo mais sóbrio e contido, limitado cromaticamente e tonalmente reduzido. O uso de fita adesiva, disposta em linhas paralelas, nítidas e ligeiramente sobrepostas, que tanto cobrem como são cobertas por outros elementos desenhados ou colados, cria uma grelha bem definida, embora discreta, que continua a prender os materiais reunidos à bidimensionalidade da superfície pictural.

A passagem da colagem pictural à tridimensionalidade dos objectos encontrados possui um famoso precedente histórico na invenção da assemblage, em 1911, por Pablo Picasso. Para Picasso, a plasticidade dos materiais usados na colagem (corda, papel de parede, bilhetes) convidava à exploração da facticidade dos materiais encontrados, bem como da capacidade de recontextualização e reinvenção infinitas dos mesmos. Foi em 1996 que Ana Vidigal permitiu que a sua produção paralela saltasse das paredes. A peça que dá o título à exposição Tudo isto e o céu também é um conjunto de livros vigorosamente embrulhados em cordel e suspensos de uma trave de madeira presa à parede. A queda livre de objectos presos por um cordel à parede apesenta afinidade com o trabalho mais ou menos contemporâneo de Annette Messager, uma artista que também se dedica obsessivamente a recolher, catalogar, recontextualizar e reorganizar elementos encontrados, e com quem Ana Vidigal sente grande afinidade.

O título Tudo isto e o céu também advém de um filme de 1940, um melodrama romântico passado na França oitocentista, com Bette Davis a representar o papel da governanta de uma família chefiada por Charles Boyer, e que conta como a atracção crescente entre os dois conduz ao amor proibido, escândalo e morte. Contudo, Vidigal foi buscar o título mais directamente à tradução portuguesa de um popular romance histórico de paixão e intriga, escrito por Rachel Field (1894-1942) e em que o filme se baseou. Este era um dos muitos livros que a artista encontrou no sótão da avó, em Alverca: montanhas de ficção popular, ali escondida devido à sua sentimentalidade de conteúdo e banalidade de estilo. Esse tipo de escrita costuma ser caracterizado como «ficção para mulheres». No seu ensaio «Mass Culture as Woman: Modernism’s Other», Andreas Huyssen escreveu eloquentemente sobre a feminização da cultura de massas (tanto os romances populares sentimentais como as fotonovelas cabem nesta categoria). Ao fazê-lo, observa que a famosa afirmação de Flaubert «Madame Bovary, c’est moi» não pode ser tomada literalmente, argumentando que a distinção entre a cultura erudita (a escrita do próprio Flaubert) e a monótona realidade da vida provinciana francesa, que força Emma Bovary, influenciada pela leitura de livros sentimentais e de má qualidade, a procurar escapadelas românticas, se encontra inscrita em papéis sexuais historicamente determinados. Flaubert descreve-nos as leituras de Emma Bovary: «Estavam [os romances] cheios de amor e de amantes, de donzelas perseguidas que desfaleciam em pavilhões, de postilhões massacrados a todo o momento, de cavalos esforçados até à morte em cada página, de florestas tenebrosas, de intrigas românticas, juras, soluços, beijos e lágrimas, encruzilhadas luarentas…»5 e assim por diante. Tudo isto e o céu também.

5 Gustave Flaubert, Madame Bovary, trad. Merloyd Lawrence, Boston: Houghton Mifflin, 1969, p. 29; citado em Andreas Huyssen, “Mass culture as woman: modernism’s other”, After the great divide: modernism, mass culture and postmodernism, Londres: MacMillan Press, 1988, p. 44.

Segundo Huyssen, não existe uma afinidade autêntica entre Flaubert, enquanto arauto do modernismo e figura exemplar dos seus cânones, e a personagem Madame Bovary (com a qual ele afirma identificar-se), que se encontra presa numa patetice e sentimentalidade que são apresentadas como distintamente femininas. Huyssen reforça o seu argumento com exemplos históricos da percepção da cultura de massas como feminina, especialmente no século XIX, quando se iniciou o modernismo, e faz uma distinção significativa entre a cultura de massas e a popular: «ao usar o termo “cultura de massas” […] refiro-me a folhetins romanescos, revistas populares e para a família, material de bibliotecas de bairro, ficções de sucesso e outras coisas do mesmo tipo — mas não, contudo, à literatura das classes trabalhadoras ou a formas residuais de culturas populares ou tradicionais mais antigas»6. Huyssen invoca os nomes de Clement Greenberg e Theodore Adorno para ilustrar a separação crescente, ao longo da primeira metade do século XX (por outras palavras, antes da Arte Pop), entre o modernismo e a cultura de massas, particularmente tendo em conta o facto de que a cultura de massas se tinha, ao longo da década de trinta, transformado num eficaz instrumento de domínio totalitário, muito especialmente nos países que baniam o modernismo, considerando-o degenerado7. Podemos omitir as voltas e reviravoltas do excelente texto de Huyssen: basta notar que o acaba afirmando muito claramente que, se bem que o confinamento da feminilidade à cultura de massas «sempre tenha dependido da muito real negação às mulheres da alta cultura e suas instituições», essa realidade é agora — e isto foi escrito no final dos anos oitenta — uma coisa do passado.

6 Andreas Huyssen, ibid., p. 49.

7 Neste aspecto, a posição de Portugal é peculiar. Enquanto director do SPN (Secretariado de Propaganda Nacional), um organismo criado em 1933 e rebaptizado, em 1945, SNI (Secretariado Nacional de Informação, Cultura Popular e Turismo), António Ferro organizou salões de arte moderna (quase) anuais — catorze ao todo, de 1935 a 1951 — que eram a mais ambiciosa manifestação da sua «política do espírito». O programa de Ferro estipulava limites de «equilíbrio indispensável» para a arte, mas também não via incompatibilidade entre o regime autoritário e a arte moderna.

Claramente, o material que Vidigal escolhe para reciclar pertence mais à categoria definida por Huyssen como cultura de massas do que à cultura popular. E, também claramente, este material reciclado alude a um mundo onde Emma Bovary poderia sentir-se perfeitamente em casa, um mundo francamente feminizado. Para começar, temos os romances sentimentais de Tudo isto e o céu também. Depois, as fotografias espirituosamente modificadas de estrelas de cinema da década de cinquenta e sessenta (Sophia Loren, Grace Kelly, Brigitte Bardot) — o tipo de fotografias que ofereciam às mulheres daquela época modelos e padrões — retiradas de uma grande colecção de velhas Paris Match, pertença do pai da artista. Vidigal apaga a aura que envolve estas celebridades, transformando-as em disparatadas figuras cómicas ao acrescentar-lhes as orelhas felpudas ou as cabeças de animais de pelúcia. Alterações semelhantes são executadas em velhas fotonovelas retiradas de revistas femininas. Além disso, há a desajeitada, angular e arregalada Menina limpa / Menina suja, da série mostrada em Private Collection, que vem directamente das ilustrações feitas por Belmonte para um livro que pertencia à mãe da artista: Emília no país da gramática, escrito pelo brasileiro Monteiro Lobato (1941). Tal como a Minnie ou a Branca de Neve de Walt Disney, Emília foi um ícone ficcional muito popular para uma geração inteira de brasileiras.

Além destas personagens femininas e das alusões a um mundo de artefactos sentimentais que oferecem gratificação e identificação imediatas, o próprio uso de materiais por parte de Vidigal — a panóplia de tecidos, fios, adereços de costura e bordado, moldes de vestidos, roupas e paninhos de mesa — possui fortes conotações culturais de feminilidade. Mas nos domínios de Vidigal a combinação da cultura de massas com o feminino não é pejorativa. Enquanto que nos exemplos extraídos por Huyssen da literatura e teoria do século XIX e dos princípios do XX a feminização da cultura de massas aponta claramente para o facto de a cultura erudita se manter um bastião masculino privilegiado, dir-se-ia que para Ana Vidigal o único mundo possível é aquele em que o conteúdo e atracção femininos de certos artefactos de cultura de massas deverão constituir o material bruto da própria cultura erudita. Apesar de ser possível argumentar de forma convincente que esta combinação de alto e baixo vem da tradição Pop, a consciência que Vidigal tem dos papéis sexuais e dos seus estereótipos (mais particularmente dos estereótipos da feminilidade) deve-se igualmente ao maior à-vontade que as mulheres começaram a ter, a partir da década de setenta, no manuseamento das suas próprias representações: efeitos práticos do trabalho teórico feminista. A flexibilidade de Vidigal, a facilidade com que se move entre a nostalgia e a espirituosidade, a irrisão e a capacidade de rir de si própria, mostra a sua descontracção ao tratar o feminino do ponto de vista da mulher, sem ter de se esconder por trás da estridência, da pomposidade ou da propaganda.

Palavras e coisas

Apesar de a materialidade, a voluptuosa facticidade das coisas e os vestígios da feitura e do processamento terem sempre caracterizado intrinsecamente a obra de Ana Vidigal, esta artista é também particularmente sensível ao poder da palavra. Elementos verbais são frequentemente introduzidos como complemento de peças plasticamente sedutoras. As palavras de Vidigal são sempre rapinadas, sempre de terceiros: recolhe frases da mesma forma que recolhe objectos. Este uso de objectos e palavras em segunda mão é um recurso distanciador, inibindo a pieguice e o sentimentalismo, que poderiam de outro modo ser as consequências fáceis de um trabalho sistemático com o passado. Sacadas de romances, poemas e textos autobiográficos, ou então de bandas desenhadas, filmes, canções e outras fontes na cultura de massas, as frases são retiradas dos seus contextos originais e usadas para provocar novos significados, duplos sentidos, ou simplesmente como respostas vingativas a ofensas não mencionadas. De forma semelhante, os títulos usados por Vidigal não são nem descrições nem alusões: são antes elementos que suplementam e complementam as obras como parte do processo de montagem através do qual a própria peça é criada. Como tal, as palavras têm uma presença tão plástica como poética. Provérbios populares mudam subitamente de tom; nomes ganham ressonância; verbos ou adjectivos tornam-se estranhamente irónicos ou perturbadores.

Estes fragmentos verbais — nos cadernos, incorporados na peça ou usados para lhe dar um título — poderiam produzir uma nota de humor equívoco e sardónico, mas frequentemente introduzem uma nota irrevogável de melancolia e perda («how many loved your moments of glad grace?» pergunta ela, recorrendo a Yeats) no tom aparentemente frívolo dos objectos usados. Também cita Sylvia Plath, Clarice Lispector, Ingeborg Bachmann: não são exactamente exemplos de escrita leve. Estes fragmentos são usados mais pelas suas qualidades disruptivas ou evocativas do que por qualquer coesão ou continuidade narrativa que pudessem trazer às peças. Pedaços de frases de livros escolares (Gostava que ela acordasse sozinha — pensava Sara — contrariar-me-ia ter que a acordar), uma vez descontextualizados e re(a)presentados, tornam-se sensuais, carregando-se subitamente de alusões eróticas. Em vários trabalhos da segunda metade da década de noventa, há um motivo subjacente que sugere o mundo hipnótico do sono, acompanhado da realidade exaltada dos sonhos. Em títulos como Insomnia ou E se ela acorda?, ou em frases em segunda mão como «Achas que podemos conseguir isso enquanto ela dorme?» e «Não podia fazer a mais pequena ideia. Mas ela dormia pesadamente», somos transportados para um domínio perturbador, onde sonolência e vigília se entrelaçam numa teia erótica de fantasias, angústias e prazeres.

Ocultação e revelação

A atracção, o fascínio, que existe entre um objecto visto e um objecto oculto — um fascínio que regressa de cada vez que nos entusiasmamos ao desembrulhar um presente ou, como apontou Roland Barthes, na excitação erótica que sentimos ao vislumbrar pele na intermitência entre duas peças de roupa (cinta e camisa, punho de camisa e pulso) — é recriado por Vidigal na sua obsessiva actividade de embrulhar brinquedos em celofane, iniciada em 1998. Muitos objectos deste tipo apareceram na sua exposição Private Collection, na Galeria 111, Porto. Tal como no trabalho de Mike Kelley ou Annette Messager, o uso por parte de Ana Vidigal de bonecos de pelúcia evoca o mundo da infância, onde tais criaturas se tornavam em objectos de fixação, ou, nas palavras do psicanalista D.W. Winnicott, objectos de transição. Um objecto de transição pode ser uma manta, um brinquedo de pelúcia, enfim, qualquer objecto (geralmente com propriedades sensoriais — tacto, odor e textura são elementos importantes no uso do objecto de transição) escolhido pela criança pequena como um apoio emocional contra a angústia sentida durante o doloroso processo de aprender a conceptualizar a realidade da sua existência autónoma enquanto sujeito. O objecto de transição é uma ponte entre o mundo interno e externo, um pertence que simultaneamente faz parte da criança enquanto se mantém separado dela, ocupando, por outras palavras, um espaço descrito por Winnicott nos seguintes termos: «entre o polegar e o ursinho de pelúcia, entre o erotismo oral e a verdadeira relação de objecto»8.

8 D.W. Winnicott, (1951) «Transitional objects and transitional phenomenon, A Study of the First “not-me” Possession» in International Journal of Psycho-Analysis, vol. 34, 1953, p. 89.

Além de usados, manchados, cambados, e agudamente antropomórficos, os animais de pelúcia a que recorrem Kelley, Messager e Vidigal perturbam-nos com a sua franca fisicalidade, a sua qualidade de terem-sido-usados: são objectos com uma história privada, um segredo íntimo. Quando não estão embrulhados em celofane, os ursinhos, coelhinhos, pandas e outras criaturas felpudas usadas por Ana Vidigal são apertadamente envoltos em fita adesiva transparente. Evocando ao mesmo tempo ligaduras e o saco amniótico, a fita transparente achata-lhes os seus pequenos traços fisionómicos, fazendo a doçura fotogénica que os bonecos tinham a princípio dar lugar a uma sugestão sinistra de aprisionamento e opressão. Enfaixados e embrulhados, estes fetiches infantis são amontoados a um canto, acumulados no chão ou dentro de uma banheira. É como se, ao retirar a individualidade idiossincrática de cada um desses objectos, a artista executasse um acto propositado de amnésia, invertendo a memória. O acto de embrulhar é, aqui, uma forma de apagar os vestígios. Neste sentido, estes objectos evocativos, ao articularem a recordação com o esquecimento, materializam o desejo subjacente à produção paralela de Vidigal: revelar e simultaneamente ocultar.
Ruth Rosengarten

*Versão reduzida de um texto publicado no livro Ana Vidigal, Assírio & Alvim, Lisboa, 2003