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A produção paralela de Ana Vidigal* por Ruth Rosengarten
Pintura e produção paralela
Em Abril de 1997, Ana Vidigal deu a uma exposição individual, que teve lugar no Museu Nogueira da Silva, em Braga, o título de Vícios privados, Públicas virtudes. A binaridade clara e divisiva desta designação reflectia-se na disposição espacial da exposição: as «públicas virtudes» eram mostradas na entrada, e os «vícios privados» num quarto interior fechado. Descendentes bem comportadas do modernismo tardio, as Públicas virtudes são colagens sobre tela quase educadamente estruturadas, com toda a compostura de um rosto público: as suas superfícies muito preenchidas não dão qualquer sinal de interioridade. O seu formato é pequeno, quadrado, compacto; como em todo o seu trabalho bidimensional, a artista vai buscar recursos formais a um léxico tardo-cubista de motivos altamente estruturados, criando uma tensão entre a pouca profundidade do espaço pictural e a realidade palpável da superfície muito trabalhada. É como se estes trabalhos fossem todos feitos de acordo com um plano oficial, retirado da herança do modernismo. Nunca é permitido à sua musicalidade negar a profunda dívida dos mesmos para com as estruturas espaciais e estratégias compositivas da colagem cubista.
Não surpreende que os «vícios privados» sejam um exemplo daquilo a que a artista chama o seu «trabalho paralelo». Neles, as exigências formais da composição bidimensional dão lugar à assemblage ou bricolage, ou simplesmente à descontextualização e recontextualização de objectos encontrados. Toda a gente sabe que os vícios são mais divertidos que as virtudes, e nos Vícios privados Vidigal torna materialmente explícita uma sensação de prazer, que, num dado registo, vem da feitura desses objectos espirituosos e sensuais. Mas existe aqui um outro prazer — um prazer mais transgressor, pois nestes «vícios privados» Vidigal representa o papel da libertina que se opõe às imposições puritanas do modernismo. Apesar de estes trabalhos paralelos nunca se libertarem da sua dívida para com as lições formais do modernismo, o deleite que Ana Vidigal retira dos elementos efémeros da cultura popular ou (especialmente) de massas — banda desenhada, brinquedos, anúncios publicitários, ficção popular — mostra que o seu uso de objectos reciclados não é apenas um expediente formal ou decorativo; que tanto a forma como o conteúdo dos objectos encontrados são intrínsecos à construção da obra, bem como às possíveis leituras da mesma. Somos assim confrontados com a cultura de massas enquanto Outro do modernismo — um Outro que, como veremos, é claramente feminizado.
Contudo, se bem que o trabalho de Vidigal tenha sempre abrangido opostos — o público e o privado, o encontrado e o feito — o seu desejo de catalogar e classificar a sua obra dentro de dois géneros discretos que chama «pintura» e «trabalho paralelo» (e aos quais poderíamos chamar uma homenagem ao modernismo, no caso do primeiro, e uma homenagem à cultura de massas, no segundo) mostra a continuidade que marca a sua produção. Públicos e privados, legítimos e marginais, todos estes impulsos nascem, com efeito, de um processo contínuo. Mas, apesar de existir uma continuidade iconográfica e metodológica no trabalho de Vidigal, o facto de ela o dividir em duas categorias autónomas não deixa de ser útil — e pertinente, quanto mais não seja por ela assim o entender: por que razão precisará, ou necessitará, ela de tal clareza taxonómica? Se os dois géneros se fundem no centro, revelam, nas suas margens, divergências de intenção e abordagem em termos de narrativa, legibilidade e recepção.
Contudo, como nasce da tendência inata de Vidigal para a ordem e a organização conceptual, a divisão em si mantém-se flexível e contingente. Além de brinquedos e objectos embrulhados, a exposição Private Collection, que teve lugar na Galeria 111, no Porto, em 2001, incluía pinturas de duas figuras gémeas de banda desenhada: a «menina limpa» e a «menina suja» — cada uma dessas meninas agia como alter-ego, ou como a consciência (boa ou má) da outra. Estas peças, apesar de serem aparentemente «pinturas», eram consideradas por Vidigal parte do seu «trabalho paralelo». Contudo, peças semelhantes a estas, produzidas posteriormente, acabaram por ser incluídas na categoria de pintura. Vidigal explica que esta divisão, aparentemente arbitrária, possui uma lógica contextual, devendo-se ao facto de que, no ano 2000, elementos tão abertamente figurativos não eram presenças habituais no seu léxico de formas abstractas; mais tarde, à medida que se ia habituando a incorporar este tipo de elementos gráficos figurativos, permitiu que este tipo de figuração fosse reclassificada como pintura, perdendo assim o estatuto «à margem da lei» de produção paralela2.
2 Correspondência por e-mail com a autora, Junho de 2003.
A continuidade de procedimento que liga as duas formas de produção de Ana Vidigal é constituída pela linguagem e prática da colagem, que estabelece o alicerce do seu trabalho: aquilo a que chama pintura inclui sempre um elemento forte e manifesto de corte e colagem, ou então um seu equivalente metafórico, em composições que são sempre construídas de forma aditiva. Mesmo quando desenhados ou pintados directamente na tela ou no papel, são sempre imagens gráficas apropriadas e facilmente reconhecíveis, traçadas com recurso a uma projecção de diapositivo ou epidiascópica, que funciona, a nível metodológico e formal, como um elemento de colagem. É que Vidigal é uma ladra, uma respigadeira. Desde o início que o seu trabalho se baseia na sua avidez e olho apurado para o rico potencial físico e conotativo dos materiais encontrados.
Tempo perdido e tempo recuperado
Materiais encontrados bidimensionais (materiais, por outras palavras, que podem, caso necessário, manter a planura e continuidade da superfície pintada) — papéis chineses e indianos, serpentinas, bandas desenhadas, fitas adesivas, individuais de vinil, padrões de costura, etiquetas, desenhos infantis (dos quais a sobrinha de Vidigal tem sido uma fonte fértil), bem como frases pilhadas de livros, filmes, poemas ou bandas desenhadas — são deslocados do seu contexto de origem e inseridos em ambos os tipos de produção: pintura e trabalho paralelo. A colagem afirma materialmente — por outras palavras, evidencia através das marcas deixadas por cortes, colagens e pinturas — os processos, e logo o tempo, da sua produção. Consequentemente, os materiais, tanto nas pinturas como no trabalho paralelo, afirmam-se como mate-riais pelo prazer hedonístico e intelectual que provocam, sem deixarem de ser vestígios e evocações de um passado vivido. Concomitantemente, em ambos os tipos de trabalho, a materialidade é simultaneamente o vestígio (a memória) de um acontecimento anterior à realização da peça, e a marca de uma acção exercida sobre a própria peça. O efeito do tempo é, contudo, muito mais manifesto na produção paralela: tais peças estão saturadas de passado, de um reconhecimento agridoce do tempo como elemento comum da memória e do esquecimento.
Além da papelaria e da retrosaria, Vidigal acrescentou a feira de velharias e o sótão às suas fontes de matéria-prima. Da mesma forma que para artistas como Christian Boltanski ou Ilya Kabakov, a feira de velharias tornou-se, para Ana Vidigal, o melhor tipo de loja de materiais artísticos: um lugar onde o passado anónimo de terceiros pode ser capturado e transformado num passado pessoal. O sótão, por outro lado, é um local mais pessoal para encontrar ou guardar tesouros: um monumento privado à história de uma família em particular, que é contada através de objectos condenados a um limbo entre a funcionalidade e o refugo. Estes objectos fetichizam-se com o tempo, tornando-se metonímias do próprio passado. Para Ana Vidigal, este sótão é ao mesmo tempo físico e metafórico — um local e uma obsessão. É um espaço cheio de histórias: o passado faz-se marca, e marca faz-se narrativa.
A velha casa da família em Alverca, entretanto vendida mas outrora pertença da bisavó da artista, tinha-se tornado num depósito de velharias para várias gerações, um local onde objectos sem uso imediato eram armazenados ou escondidos. Esquecidos e, mais tarde, deitados fora ou nostalgicamente resgatados, estes objectos narram as histórias sobrepostas e entretecidas de membros da família agora dispersos; hábitos, práticas e obsessões avassaladas por novos desejos, novas práticas e modas, tecnologias mais recentes. Constituem o resíduo de narrativas de progresso. Repositório do tesouro da família, o sótão de Alverca continha os recursos a partir dos quais Vidigal resgatou ou mesmo (re)inventou narrativas perdidas da infância. Enquanto esse tipo de narração nostálgica é frequentemente ficcionalizado, ou semi-ficcionalizado, no seu trabalho, uma série recente, intitulada Casinhas (2002) torna clara a importância do sótão da velha quinta de Alverca, expondo o que na maior parte da obra é apenas implícito: a importância para Ana Vidigal de uma narração autobiográfica como o ímpeto que traz uma peça à existência.
Os objectos recuperados e reciclados sobre os quais as peças de Casinhas foram elaboradas eram uma série de miniaturas de casas feitas de caixas de sapatos, que Vidigal comprou a um sapateiro durante umas férias na ilha de Porto Santo. O sapateiro tinha-as feito para enfeitar um enorme presépio, emblema e decoração tradicional das festividades natalícias dessa ilha e da Madeira. A artista guardou estas casas no seu atelier durante dois anos, sem saber que uso lhes dar: apesar de serem suficientemente encantadoras por si sós, Vidigal achava-as mudas; não conseguia estabelecer uma ligação pessoal ou emocional com elas. «Um dia», observou ela recentemente, «naqueles dias, de excesso de nostalgia, comecei a pensar nos locais geográficos que tinham desaparecido da minha vida e lembrei-me da casa de Alverca. Coisa que evito, porque me deprime. Mas de repente descobri um elo emocional com aquelas casinhas. Eram A Casa, a casa que eu perdi. A partir daí já conheces o processo. A casa torna-se Eu…»3 Ao apropriar-se das casas — envolvendo-as em fio, cobrindo-as de etiquetas, embutindo-as em roupas de bebé — redescobre uma personalidade que o tempo lentamente apagara. Os objectos tornam-se metáforas do eu; um palimpsesto de momentos passados é assim descoberto e decifrado no processo de trabalho. Contudo, o que é trazido a público não é uma narração autobiográfica diarística ou literal, mas sim a construção de uma narrativa pessoal a partir de objectos que evocam o corpo perdido da criança enterrada na adulta e a casca vazia de um lar que já não existe.
3 Correspondência por e-mail com a autora, Junho de 2003.
Um processo semelhante de narração autobiográfica nostálgica tivera lugar numa peça mais antiga, Penélope (2000): uma cama de casal coberta com uma colcha feita de sacos de plástico transparente. Os sacos contêm cartas retiradas da correspondência mantida entre a mãe e o pai de Vidigal durante os dois anos que este último esteve colocado na Guiné durante a Guerra Colonial. Penélope, que ia fazendo e desfazendo o seu trabalho de tecelagem como forma de frustrar os pretendentes enquanto esperava o regresso de Ulisses, tem sido um símbolo fértil para várias mulheres (a obra de Janine Antoni e Louise Bourgeois, por exemplo, sugere as figuras míticas de Aracne e Penélope). A relação mítica existente entre actividades como tecelagem, bordados e narração de histórias em meios femininos manifesta-se etimologicamente na relação entre «texto» e «têxtil» e linguisticamente nas analogias entre «tecer» e «contar» (tecer uma história): a artista australiana Narelle Jubelin — cujo trabalho é uma forma de narração subtil — tornou explícita esta analogia em peças onde utiliza bordados e/ou textos. Na Penélope de Vidigal, o fio ininterrupto de comunicação verbal através do qual a história dos seus progenitores é contada materializa-se por meio da inclusão das cartas. A cama, como espaço de sono e sonho, de amor e ausência, de nascimento e morte, torna-se igualmente o mais tabu dos espaços — o local da intimidade dos pais: o local onde os progenitores, mesmo separados pela geografia e pela guerra, trocam palavras. As cartas mantêm-se seladas em plástico, tentadoramente fora do alcance. O elo autobiográfico é evidente, o segredo íntimo quase se faz público… mas só para ser em seguida — como é próprio do tabu — negado.
Na sua actividade de recuperar e recolher vestígios materiais, o narrador nostálgico ganha algo de arqueólogo ou antropólogo. Enquanto que o antropólogo poderia desenvolver no seu trabalho o conceito do «exótico», sabemos que, para que tal tenha lugar, são precisos antes de mais nada separação e distanciamento. Os conceitos de «terra natal» e «estrangeiro» são mutuamente provocadores: cada um deles existe apenas em tensão dialéctica com o outro. O exótico vem, então, definir os limites com que o eu se defronta: é a diferença que permite ao familiar situar-se. Este distanciamento ou diferenciação pode ser geográfico, mas pode também ser temporal. O arqueólogo descobre e revela, através de marcas e pormenores, de pistas sintomáticas, a estranheza e segredos de tempos passados. Ao recolher vestígios materiais — objectos que são rastos mnésicos de acontecimentos e actividades sempre, por definição, localizados no passado — Vidigal transforma-se numa espécie de antropóloga ou arqueóloga do eu. O eu é um repositório de tesouros enterrados que, por serem inacessíveis, transformam o sujeito no seu próprio Outro; a estranheza insere-se no familiar. (O fenómeno do sujeito se ver a si próprio como Outro não é estranho ao discurso da psicanálise. Freud e Lacan argumentariam que o eu não poderia reconhecer-se sem reconhecer que contém essa mesma estranheza.) Por meio de inscrições à superfície e acontecimentos casuais — a madalena de Proust é o mais famoso exemplo literário desse tipo de libertação do passado — o passado enterrado ou recalcado vem à luz, da mesma forma que um sintoma psicológico poderia expediente e contingentemente pousar numa gama disponível de manifestações fisiológicas.
Além de obcecada com vestígios, Vidigal é também uma coleccionadora de lembranças. A lembrança — na forma de espécime ou troféu — representa a apropriação da distância: nasce de uma conquista pessoal do espaço (exterior ou interior), mas pressupõe igualmente um desejo de controlar o tempo, de transformar acontecimentos passados numa narrativa presente: por outras palavras, de fazer memórias. A lógica melancólica da lembrança funciona no trabalho de Vidigal, apesar do sentido de humor e do espírito travesso da artista. Particularmente na sua produção paralela, onde mordacidade espirituosa e nostalgia formam um par surpreendentemente compatível, os objectos de Vidigal dão sinais abafados de anseio e comunicam uma impressão de perda — de tempo gasto. Vidigal escreve num dos seus cadernos a seguinte citação de Ana Hatherly, retirada de Tisanas: «O que pode representar perder ou ganhar tempo? Acha que isso é possível? Acha que o tempo pode outra coisa que não seja perder-se?». Tal como a fotografia que, na sucinta formulação de Barthes, nos recorda que a morte está no futuro, a lembrança é um testemunho de mortalidade. Uma folha ou flor seca, um lenço com um vago odor a perfume antigo, uma carta há muito enviada (ou não), os vestígios sujos e partidos de brincadeiras infantis — tudo isso, apesar de cuidadosamente preservado para criar a ilusão da paragem do tempo, só consegue recordar-nos a inelutável passagem deste.
Como mostrou a crítica literária Susan Stewart, a anterioridade da lembrança — o facto de ter a sua proveniência não só noutro lugar, como também noutro tempo — é muitas vezes um aspecto essencial da sua capacidade de autenticação. Sabemos que o acontecimento teve lugar porque possuímos os seus vestígios materiais. Concomitantemente, os vestígios de um tempo anterior são ao mesmo tempo familiares e estranhos, simultaneamente «autênticos» e, por intermédio da distância temporal, «exóticos». (Se o passado é, como na famosa frase de L.P. Hartley, um outro país, a criança que outrora existiu é simultaneamente eu e outro.) Ao provocarem ao mesmo tempo reconhecimento e afastamento, as lembranças permitem ao que é visível na superfície «revelar uma profunda interioridade através da narrativa»4. Tal como o sintoma, a lembrança é um objecto que se esforça por alcançar a realização narrativa.
4 Susan Stewart, On longing: narratives of the miniature, the gigantic, the souvenir, the collection, Durham e Londres: Duke University Press, 1993, p. 146.
Modernismo e cultura de massas
A primeira admissão pública, por parte de Ana Vidigal, do seu namorisco marginal, fora dos limites formais e «legítimos» da bidimensionalidade que ela identifica com a pintura, teve lugar numa exposição sem título, apresentada na Galeria 111, de Lisboa, em 1994. Os materiais que reuniu para fazer estes trabalhos pequenos e sedutoramente tácteis sugerem uma criança à solta numa papelaria ou retrosaria das antigas (os próprios prazeres dessa actividade evocam um tempo passado, um tempo recordado, antes da uniformização da aparência e mercadoria das lojas): botões, grampos, fitas de embrulho, cantos de fotografias, etiquetas, alfinetes de ama, colchetes, moldes de vestidos, materiais para acondicionar embrulhos, e uma variedade de papéis lisos ou com padrões. Dobrados, presos com alfinetes, fita adesiva ou grampos, cosidos, laminados, selados em sacos de plástico como se fossem amostras, os materiais encontrados parecem quase pairar acima das folhas de papel a que estão fisicamente presos. O formato das folhas estabelece os parâmetros espaciais que enquadram cada conjunto de materiais, separando-o de um mundo exterior cheio de outros objectos fabricados. Esta característica formal mantém-se em trabalhos mais recentes, como Casinhas (2002) e Pastelarias (2002).
Estes conjuntos de materiais mantêm uma disposição formal fortemente tectónica. Apesar da sua plasticidade, afirmam paradoxalmente os valores adquiridos da composição pictural: equilíbrio, diversidade, organização bidimensional. A sua insistência no quadrado e no círculo é sinal de um amor pela simetria que entra em conflito com uma tendência, igualmente persistente, para o irregular e o assimétrico: a disputa entre os dois princípios subjaz à noção inata de composição, presente em toda a obra de Ana Vidigal. Esta organização tectónica torna-se ainda mais enfática numa série de trabalhos sobre papel em formato maior, Sete pecados mortais (1995): nela, a anterior impressão de abundância e diversidade dá lugar a um picturalismo mais sóbrio e contido, limitado cromaticamente e tonalmente reduzido. O uso de fita adesiva, disposta em linhas paralelas, nítidas e ligeiramente sobrepostas, que tanto cobrem como são cobertas por outros elementos desenhados ou colados, cria uma grelha bem definida, embora discreta, que continua a prender os materiais reunidos à bidimensionalidade da superfície pictural.
A passagem da colagem pictural à tridimensionalidade dos objectos encontrados possui um famoso precedente histórico na invenção da assemblage, em 1911, por Pablo Picasso. Para Picasso, a plasticidade dos materiais usados na colagem (corda, papel de parede, bilhetes) convidava à exploração da facticidade dos materiais encontrados, bem como da capacidade de recontextualização e reinvenção infinitas dos mesmos. Foi em 1996 que Ana Vidigal permitiu que a sua produção paralela saltasse das paredes. A peça que dá o título à exposição Tudo isto e o céu também é um conjunto de livros vigorosamente embrulhados em cordel e suspensos de uma trave de madeira presa à parede. A queda livre de objectos presos por um cordel à parede apesenta afinidade com o trabalho mais ou menos contemporâneo de Annette Messager, uma artista que também se dedica obsessivamente a recolher, catalogar, recontextualizar e reorganizar elementos encontrados, e com quem Ana Vidigal sente grande afinidade.
O título Tudo isto e o céu também advém de um filme de 1940, um melodrama romântico passado na França oitocentista, com Bette Davis a representar o papel da governanta de uma família chefiada por Charles Boyer, e que conta como a atracção crescente entre os dois conduz ao amor proibido, escândalo e morte. Contudo, Vidigal foi buscar o título mais directamente à tradução portuguesa de um popular romance histórico de paixão e intriga, escrito por Rachel Field (1894-1942) e em que o filme se baseou. Este era um dos muitos livros que a artista encontrou no sótão da avó, em Alverca: montanhas de ficção popular, ali escondida devido à sua sentimentalidade de conteúdo e banalidade de estilo. Esse tipo de escrita costuma ser caracterizado como «ficção para mulheres». No seu ensaio «Mass Culture as Woman: Modernism’s Other», Andreas Huyssen escreveu eloquentemente sobre a feminização da cultura de massas (tanto os romances populares sentimentais como as fotonovelas cabem nesta categoria). Ao fazê-lo, observa que a famosa afirmação de Flaubert «Madame Bovary, c’est moi» não pode ser tomada literalmente, argumentando que a distinção entre a cultura erudita (a escrita do próprio Flaubert) e a monótona realidade da vida provinciana francesa, que força Emma Bovary, influenciada pela leitura de livros sentimentais e de má qualidade, a procurar escapadelas românticas, se encontra inscrita em papéis sexuais historicamente determinados. Flaubert descreve-nos as leituras de Emma Bovary: «Estavam [os romances] cheios de amor e de amantes, de donzelas perseguidas que desfaleciam em pavilhões, de postilhões massacrados a todo o momento, de cavalos esforçados até à morte em cada página, de florestas tenebrosas, de intrigas românticas, juras, soluços, beijos e lágrimas, encruzilhadas luarentas…»5 e assim por diante. Tudo isto e o céu também.
5 Gustave Flaubert, Madame Bovary, trad. Merloyd Lawrence, Boston: Houghton Mifflin, 1969, p. 29; citado em Andreas Huyssen, “Mass culture as woman: modernism’s other”, After the great divide: modernism, mass culture and postmodernism, Londres: MacMillan Press, 1988, p. 44.
Segundo Huyssen, não existe uma afinidade autêntica entre Flaubert, enquanto arauto do modernismo e figura exemplar dos seus cânones, e a personagem Madame Bovary (com a qual ele afirma identificar-se), que se encontra presa numa patetice e sentimentalidade que são apresentadas como distintamente femininas. Huyssen reforça o seu argumento com exemplos históricos da percepção da cultura de massas como feminina, especialmente no século XIX, quando se iniciou o modernismo, e faz uma distinção significativa entre a cultura de massas e a popular: «ao usar o termo “cultura de massas” […] refiro-me a folhetins romanescos, revistas populares e para a família, material de bibliotecas de bairro, ficções de sucesso e outras coisas do mesmo tipo — mas não, contudo, à literatura das classes trabalhadoras ou a formas residuais de culturas populares ou tradicionais mais antigas»6. Huyssen invoca os nomes de Clement Greenberg e Theodore Adorno para ilustrar a separação crescente, ao longo da primeira metade do século XX (por outras palavras, antes da Arte Pop), entre o modernismo e a cultura de massas, particularmente tendo em conta o facto de que a cultura de massas se tinha, ao longo da década de trinta, transformado num eficaz instrumento de domínio totalitário, muito especialmente nos países que baniam o modernismo, considerando-o degenerado7. Podemos omitir as voltas e reviravoltas do excelente texto de Huyssen: basta notar que o acaba afirmando muito claramente que, se bem que o confinamento da feminilidade à cultura de massas «sempre tenha dependido da muito real negação às mulheres da alta cultura e suas instituições», essa realidade é agora — e isto foi escrito no final dos anos oitenta — uma coisa do passado.
6 Andreas Huyssen, ibid., p. 49.
7 Neste aspecto, a posição de Portugal é peculiar. Enquanto director do SPN (Secretariado de Propaganda Nacional), um organismo criado em 1933 e rebaptizado, em 1945, SNI (Secretariado Nacional de Informação, Cultura Popular e Turismo), António Ferro organizou salões de arte moderna (quase) anuais — catorze ao todo, de 1935 a 1951 — que eram a mais ambiciosa manifestação da sua «política do espírito». O programa de Ferro estipulava limites de «equilíbrio indispensável» para a arte, mas também não via incompatibilidade entre o regime autoritário e a arte moderna.
Claramente, o material que Vidigal escolhe para reciclar pertence mais à categoria definida por Huyssen como cultura de massas do que à cultura popular. E, também claramente, este material reciclado alude a um mundo onde Emma Bovary poderia sentir-se perfeitamente em casa, um mundo francamente feminizado. Para começar, temos os romances sentimentais de Tudo isto e o céu também. Depois, as fotografias espirituosamente modificadas de estrelas de cinema da década de cinquenta e sessenta (Sophia Loren, Grace Kelly, Brigitte Bardot) — o tipo de fotografias que ofereciam às mulheres daquela época modelos e padrões — retiradas de uma grande colecção de velhas Paris Match, pertença do pai da artista. Vidigal apaga a aura que envolve estas celebridades, transformando-as em disparatadas figuras cómicas ao acrescentar-lhes as orelhas felpudas ou as cabeças de animais de pelúcia. Alterações semelhantes são executadas em velhas fotonovelas retiradas de revistas femininas. Além disso, há a desajeitada, angular e arregalada Menina limpa / Menina suja, da série mostrada em Private Collection, que vem directamente das ilustrações feitas por Belmonte para um livro que pertencia à mãe da artista: Emília no país da gramática, escrito pelo brasileiro Monteiro Lobato (1941). Tal como a Minnie ou a Branca de Neve de Walt Disney, Emília foi um ícone ficcional muito popular para uma geração inteira de brasileiras.
Além destas personagens femininas e das alusões a um mundo de artefactos sentimentais que oferecem gratificação e identificação imediatas, o próprio uso de materiais por parte de Vidigal — a panóplia de tecidos, fios, adereços de costura e bordado, moldes de vestidos, roupas e paninhos de mesa — possui fortes conotações culturais de feminilidade. Mas nos domínios de Vidigal a combinação da cultura de massas com o feminino não é pejorativa. Enquanto que nos exemplos extraídos por Huyssen da literatura e teoria do século XIX e dos princípios do XX a feminização da cultura de massas aponta claramente para o facto de a cultura erudita se manter um bastião masculino privilegiado, dir-se-ia que para Ana Vidigal o único mundo possível é aquele em que o conteúdo e atracção femininos de certos artefactos de cultura de massas deverão constituir o material bruto da própria cultura erudita. Apesar de ser possível argumentar de forma convincente que esta combinação de alto e baixo vem da tradição Pop, a consciência que Vidigal tem dos papéis sexuais e dos seus estereótipos (mais particularmente dos estereótipos da feminilidade) deve-se igualmente ao maior à-vontade que as mulheres começaram a ter, a partir da década de setenta, no manuseamento das suas próprias representações: efeitos práticos do trabalho teórico feminista. A flexibilidade de Vidigal, a facilidade com que se move entre a nostalgia e a espirituosidade, a irrisão e a capacidade de rir de si própria, mostra a sua descontracção ao tratar o feminino do ponto de vista da mulher, sem ter de se esconder por trás da estridência, da pomposidade ou da propaganda.
Palavras e coisas
Apesar de a materialidade, a voluptuosa facticidade das coisas e os vestígios da feitura e do processamento terem sempre caracterizado intrinsecamente a obra de Ana Vidigal, esta artista é também particularmente sensível ao poder da palavra. Elementos verbais são frequentemente introduzidos como complemento de peças plasticamente sedutoras. As palavras de Vidigal são sempre rapinadas, sempre de terceiros: recolhe frases da mesma forma que recolhe objectos. Este uso de objectos e palavras em segunda mão é um recurso distanciador, inibindo a pieguice e o sentimentalismo, que poderiam de outro modo ser as consequências fáceis de um trabalho sistemático com o passado. Sacadas de romances, poemas e textos autobiográficos, ou então de bandas desenhadas, filmes, canções e outras fontes na cultura de massas, as frases são retiradas dos seus contextos originais e usadas para provocar novos significados, duplos sentidos, ou simplesmente como respostas vingativas a ofensas não mencionadas. De forma semelhante, os títulos usados por Vidigal não são nem descrições nem alusões: são antes elementos que suplementam e complementam as obras como parte do processo de montagem através do qual a própria peça é criada. Como tal, as palavras têm uma presença tão plástica como poética. Provérbios populares mudam subitamente de tom; nomes ganham ressonância; verbos ou adjectivos tornam-se estranhamente irónicos ou perturbadores.
Estes fragmentos verbais — nos cadernos, incorporados na peça ou usados para lhe dar um título — poderiam produzir uma nota de humor equívoco e sardónico, mas frequentemente introduzem uma nota irrevogável de melancolia e perda («how many loved your moments of glad grace?» pergunta ela, recorrendo a Yeats) no tom aparentemente frívolo dos objectos usados. Também cita Sylvia Plath, Clarice Lispector, Ingeborg Bachmann: não são exactamente exemplos de escrita leve. Estes fragmentos são usados mais pelas suas qualidades disruptivas ou evocativas do que por qualquer coesão ou continuidade narrativa que pudessem trazer às peças. Pedaços de frases de livros escolares (Gostava que ela acordasse sozinha — pensava Sara — contrariar-me-ia ter que a acordar), uma vez descontextualizados e re(a)presentados, tornam-se sensuais, carregando-se subitamente de alusões eróticas. Em vários trabalhos da segunda metade da década de noventa, há um motivo subjacente que sugere o mundo hipnótico do sono, acompanhado da realidade exaltada dos sonhos. Em títulos como Insomnia ou E se ela acorda?, ou em frases em segunda mão como «Achas que podemos conseguir isso enquanto ela dorme?» e «Não podia fazer a mais pequena ideia. Mas ela dormia pesadamente», somos transportados para um domínio perturbador, onde sonolência e vigília se entrelaçam numa teia erótica de fantasias, angústias e prazeres.
Ocultação e revelação
A atracção, o fascínio, que existe entre um objecto visto e um objecto oculto — um fascínio que regressa de cada vez que nos entusiasmamos ao desembrulhar um presente ou, como apontou Roland Barthes, na excitação erótica que sentimos ao vislumbrar pele na intermitência entre duas peças de roupa (cinta e camisa, punho de camisa e pulso) — é recriado por Vidigal na sua obsessiva actividade de embrulhar brinquedos em celofane, iniciada em 1998. Muitos objectos deste tipo apareceram na sua exposição Private Collection, na Galeria 111, Porto. Tal como no trabalho de Mike Kelley ou Annette Messager, o uso por parte de Ana Vidigal de bonecos de pelúcia evoca o mundo da infância, onde tais criaturas se tornavam em objectos de fixação, ou, nas palavras do psicanalista D.W. Winnicott, objectos de transição. Um objecto de transição pode ser uma manta, um brinquedo de pelúcia, enfim, qualquer objecto (geralmente com propriedades sensoriais — tacto, odor e textura são elementos importantes no uso do objecto de transição) escolhido pela criança pequena como um apoio emocional contra a angústia sentida durante o doloroso processo de aprender a conceptualizar a realidade da sua existência autónoma enquanto sujeito. O objecto de transição é uma ponte entre o mundo interno e externo, um pertence que simultaneamente faz parte da criança enquanto se mantém separado dela, ocupando, por outras palavras, um espaço descrito por Winnicott nos seguintes termos: «entre o polegar e o ursinho de pelúcia, entre o erotismo oral e a verdadeira relação de objecto»8.
8 D.W. Winnicott, (1951) «Transitional objects and transitional phenomenon, A Study of the First “not-me” Possession» in International Journal of Psycho-Analysis, vol. 34, 1953, p. 89.
Além de usados, manchados, cambados, e agudamente antropomórficos, os animais de pelúcia a que recorrem Kelley, Messager e Vidigal perturbam-nos com a sua franca fisicalidade, a sua qualidade de terem-sido-usados: são objectos com uma história privada, um segredo íntimo. Quando não estão embrulhados em celofane, os ursinhos, coelhinhos, pandas e outras criaturas felpudas usadas por Ana Vidigal são apertadamente envoltos em fita adesiva transparente. Evocando ao mesmo tempo ligaduras e o saco amniótico, a fita transparente achata-lhes os seus pequenos traços fisionómicos, fazendo a doçura fotogénica que os bonecos tinham a princípio dar lugar a uma sugestão sinistra de aprisionamento e opressão. Enfaixados e embrulhados, estes fetiches infantis são amontoados a um canto, acumulados no chão ou dentro de uma banheira. É como se, ao retirar a individualidade idiossincrática de cada um desses objectos, a artista executasse um acto propositado de amnésia, invertendo a memória. O acto de embrulhar é, aqui, uma forma de apagar os vestígios. Neste sentido, estes objectos evocativos, ao articularem a recordação com o esquecimento, materializam o desejo subjacente à produção paralela de Vidigal: revelar e simultaneamente ocultar.
Ruth Rosengarten
*Versão reduzida de um texto publicado no livro Ana Vidigal, Assírio & Alvim, Lisboa, 2003
"Menina limpa, menina suja, notas prévias a uma exposição" de Isabel Carlos
Menina Limpa, Menina Suja é o título de uma série de obras de Ana Vidigal datadas de 2000 e impôs-se como título desta exposição, já que constitui uma síntese perfeita dos seus trinta anos de trabalho que esta exposição antológica pretende revisitar.
A obra de Ana Vidigal (Lisboa, 1960) foi sempre conotada sobretudo com a pintura, mas esta exposição mostra como não deverá ficar reduzida a esse suporte; a própria artista chamou de «trabalho paralelo» a essa outra dimensão mais espacial e, no limite, mais experimental, ou melhor dito, mais livre de cânones e de constrangimentos formais:
«Sempre fiz colagens. E sempre utilizei coisas apanhadas. Hoje tenho pena de algumas colagens que utilizei, tê-las utilizado com pintura por cima. Porque hoje, se as tivesse novamente, utilizava-as a cru.
Começo a fazer o chamado “trabalho paralelo” quando começo a perceber que quem decide sou eu. Que escuso de “camuflar”. Por isso é que digo que para mim o tempo é uma coisa fundamental. O tempo foi-me dando segurança […] A pintura sempre esteve mais acima e as outras coisas estavam um bocadinho mais para baixo. As outras coisas têm vindo a subir e logicamente há-de haver esse ponto em que estando ao mesmo nível elas se cruzam. Se fundem».1
Um esquema – um cima e um baixo – que, em Vidigal, não se limita a uma tabela valorativa das várias dimensões formais do seu trabalho, mas que implica, também, determinadas referências culturais: a alta e a baixa cultura, a massificada e a erudita.
Os trabalhos recentes são um bom exemplo dessa fusão, nomeadamente o que criou para esta exposição, Bravura (Não Vaciles Põe-te a Andar), de 2010, em que, na sequência da exposição “Matar o Tempo” (Galeria 111, 2009), a artista recorre às técnicas da colagem, da ampliação e do recorte. Partindo de imagens de labirintos, jogos e bandas desenhadas publicadas em jornais e revistas, a artista quase que não recorre à intervenção pictórica, o pincel e a tinta perdem protagonismo em relação à tesoura e à cola e as camadas e a sobreposição, os jogos entre palavras e imagens – desde sempre presentes na sua obra –, são agora trabalhados quase exclusivamente através da junção de elementos previamente impressos e retirados da «baixa» cultura, mas que, curiosamente, atingem uma elevada escala em termos de dimensão e ocupação espacial.
Esta antológica procura mostrar as várias dimensões da obra de Vidigal porque elas são contínuas e paralelas e porque seguramente sem o «trabalho paralelo» a pintura seria outra; entre os materiais «sujos» da pintura e a «limpeza» dos materiais de escritório e de retrosaria existe um trânsito e um fluxo de quem deseja inverter pirâmides valorativas e trazer para primeiro plano o que habitualmente está em último.
Logo no início da exposição mostra-se um vídeo de 2000, intitulado Domingo à Tarde, que funciona como uma chave para toda a obra, dado que revela a prática, a metodologia e o processo de Vidigal.
Assumidamente doméstico – câmara fixa, por vezes desfocado, azulejos em fundo –, o vídeo regista a artista a operar uma série de acções sobre o seu próprio rosto: primeiro, cobre-o de fita-cola dupla; depois, adiciona-lhe pioneses, plasticina, enclausura-o num saco de plástico transparente; finalmente, apresenta-o reflectido numa superfície espelhada que o deforma e transfigura com a ajuda das mãos e de sucessivos esgares e caretas.
Martha Rossler, Bruce Nauman, Helena Almeida e mesmo Francis Bacon ecoam nestas imagens, mas nunca de um modo epigonal, antes como consciência assumida que o acto artístico é sempre um aprofundamento ou um passo mais à frente, ou ao lado, daquilo que outros criadores fizeram. Os criadores podem vir de um passado artístico longínquo ou não; no caso de Vidigal, é um passado recente, é a arte do século XX: do modernismo à pop, passando pelo recurso ao texto e à ironia corrosiva do conceptualismo, bem como à desmontagem da iconografia da sociedade mediática operada pelo feminismo.
A auto-representação – e veja-se também a instalação Void, de 2008, em que o rosto da artista emoldurado por uma boina militar forra uma almofada disposta sobre uma cama – a auto-referencialidade, a colagem, a sobreposição, a transparência e a utilização de materiais comuns, tudo está neste vídeo. Mas também a criação de uma espécie de máscara ou armadura que simultaneamente protege e afasta (se entrássemos em contacto com aquele rosto cravado de tachas magoar-nos-íamos). A sequência de acções do vídeo possui também algo de autopunição, a dada altura tememos mesmo que o rosto sufoque dentro do saco de plástico. Um ano mais tarde, a artista usa stills deste vídeo acrescentando-lhes texto para criar uma outra obra que tem um título revelador: Tornei-me Feminista para Não Ser Masoquista.
Punição, castigo e ornamento. O modo como Vidigal lida com o ornamento e o decorativo – papéis de embrulho, padrões múltiplos e variados – é subtilmente cáustico. Equaciona os padrões oriundos das mais banais funções – florinhas, bonecos, papéis de parede, moldes de revista de costura – com o vocabulário modernista e abstracto-geométrico.
O decorativo sempre esteve associado ao mundo feminino e a abstracção ao masculino2; ao contaminar os dois, a artista curto-circuita simultaneamente os dois. A pureza limpa do moderno que com o tempo e a apropriação pelo design e a moda – o vestido Mondrian de Yves Saint Laurent em 1965 bastaria como exemplo – se transformou precisamente em decorativo. E por sua vez os padrões decorativos comuns e massificados, kitchs, foleiros, bregas, são elevados a eruditos ao misturarem-se com o abstracto e geométrico, em pinturas que se colocam nas paredes brancas imaculadas das galerias, das casas afortunadas ou dos museus. Duplo circuito então para perturbar a pirâmide de valoração artística.
Os textos que se seguem de Ruth Rosengarten e Claire Tancons aprofundam as várias vertentes do universo de Vidigal. Rosengarten, num texto seminal e incontornável que aqui se republica, aborda o processo plástico, a genealogia artística e a dimensão narrativa e autobiográfica que atravessa toda a obra; e Tancons interroga a dimensão pós-colonial e femininista. A artista, caso praticamente único nas artes visuais em Portugal, assume desassombradamente uma postura feminista.
Menina Limpa, Menina Suja ou, como escreve numa das obras desta série, «ao lado de uma menina limpa há sempre uma menina suja». Vidigal construiu um universo único e autoral a partir de múltiplas autorias, tanto plásticas como literárias. Os textos que surgem nas suas telas têm, tal como os signos visuais, múltiplas origens e diversas hierarquias:
«Gosto da escrita como caligrafia também, e utilizo tanto frases de Baudelaire como a seguir vou aos meus volumes do “Simplesmente Maria” em fotonovela, todo encadernado, que, se tu tirares as frases do contexto, têm coisas absolutamente maravilhosas. E costumo misturar, tanto coloco uma frase minha, como a seguir uma de Clarice Lispector…»3
Sem nunca ser ostensiva ou propagandística mas sempre lúdica, por vezes marota, a obra de Vidigal é atravessada pela crítica social e de costumes à sociedade portuguesa: uma espécie de retrato iconográfico dos últimos trinta anos de uma jovem democracia ainda atravessada por muitos anacronismos, moralismos e assimetrias. Não o faz através de dispositivos como o documentário, a entrevista, o depoimento ou os documentos históricos, mas antes por um vocabulário artístico constituído a partir das imagens com que crescemos, dos livros infantis à banda desenhada – os primeiros veículos de concepções do mundo e da sociedade que nos enformam e formam.
«Uma das minhas memórias de infância são os livros da Anita, eu adorava a Anita, era absolutamente fascinada, não propriamente pelo que a Anita fazia, mas pelos desenhos. E depois, lembro-me que uma das minhas grandes discussões com a minha mãe, que era extremamente arrumada, era como organizar a minha estante onde tinha a colecção toda da Anita. A minha mãe punha 1, 2, 3, 4, 5… e eu punha encarnados, amarelos, azuis, por cores.»4
Estamos então perante alguém que «arruma» a história por cores e imagens, e não por datas e factos, que entrelaça a chamada alta e baixa cultura, o suave com o duro, o imediato com o complexo, o plano pessoal com o social e político, a Menina Limpa com a Menina Suja.
Isabel Carlos
1 Ana Vidigal em entrevista a Susana Pomba, in Ana Vidigal, Lisboa, Galeria 111, 2009, p. 11.
2 Cf. Mike Kelly, artista com quem Ana Vidigal se identifica, in Crime and Ornament – The Arts and Popular Culture in the Shadow of Adolf Loos, Toronto, YYZ Books, 2002, pp. 129-130.
3 Ana Vidigal, Op. Cit., p. 14.
4 Ibidem.
Talking to you and you, by Claire Tacons in catalogue "clean girl dirty girl"
Ana, Isabel, Claire:
A Trialogue It was Summer in 2009. I was coming to Lisbon and Portugal for the first time and meeting Isabel for the second time. The fist time, it was in the Spring, in Italy, for a conference in which we both participated. When I arrived in Lisbon that July, I was on my way back from a trip to Mozambique, Angola, São Tomé and Cabo Verde, former African colonies of Portugal. Guinea Bissau, whose ultimate post-independence political tribulations made it unsafe for the foreigner to visit at the time, was missing from my list. Guinea Bissau, the country that took Ana’s father away for three years, an absence which continues to have an impact on her adult life as she reminisces her days as a child longing for his return.
Lunchtime, the Gulbenkian. Isabel Carlos took me on a tour of CAM where she had just started to work. Back into her office, she showed me the book of the artist on whose retrospective she was working. An important artist from Portugal, one of the quiet spokesperson of the Portuguese feminist art movement. Ana Vidigal. An artist whose career is intertwined with Isabel’s as they came of age together in the national and international art worlds. I perused the book. I was impressed by the range and reach of the work, which I assessed as that of an accomplished artist. The work has the feel of a lifetime’s achievement. Having worked mostly with young and emerging artists of late, I gasp in awe at the possibility of fulfillment contained in their work and arrived at in the work of Ana which is unfolding under my eyes.
Is it before or after Isabel threw the F-word in the conversation that I start to think of Ana’s work in terms of Feminism? I recognize a mass popular imagery that is familiar as are the critical devices by which to question it: cartoon characters lifted from their children books and superimposed to geometrical patterns, entering the world of high-brow modernism; stuffed animals saucisonned in translucent plastic tape further martyred in the hands of an adult after suffering the repeated assault of an all-too-caring child; comic strips, female magazines, newspaper games, cut and pasted into complex abstract decorative collage compositions. Louise Lawler and Martha Rosler came to mind, the former for her collector’s sensibility, the later for her photomontage strategy, without the war imagery. Ghada Amer is also a passing thought, minus the sexual content. I am paused for a reassessment of Feminism in art or rather for an assessment of Ana’s work through the lens of Feminism.
Isabel had told me that it was paramount that I go and see the work in person, as its texture is important and can only be appreciated in the flesh. An appointment with Galeria111 is arranged. Isabel drops me off. I am ushered in the gallery’s reserves, where Ana’s work is preserved, museum-style, in movable panels. I see Plexiglass boxes into which precious castaways of bygone life are encased. I am told that they form a series. Seriality as a critical strategy in works of the institutional critique era I thought. Other works are laid out on the floor before me. If my memory does not fail me, it was possibly the recent work for the Sharjah Biennial commissioned by Isabel. An ostrich never seemed as mysterious as with its neck cut apart in a visual rebus.
I did not meet Ana during that short visit in Lisbon. Another visit to Lisbon was planned and cancelled. I met Ana a couple of days ago. And a veiled woman from Iran, Heidi, Ànita, and a cast of unlikely soap opera singers, female commercial announcers and small time TV stars. They all form part of Ana’s online alter-egos in her recent Serie FACEBOOK blogspot project, her “semiotics of the living room”, an update of Martha Rosler’s Semiotics of the Kitchen in the internet age. I was in the southernmost island in the Caribbean. Ana was presumably home in Lisbon. I was connecting with Ana with a few days of delays (the videos were posted in late February 2010), wondering on which level exactly the connection was established. Was I connecting with Ana as a woman or as an art historian? Or as a female art historian? Or as a female art historian writing about a female artist? Or as a post-feminist era female art historian who had been asked by a presumably feminist female curator to write about a feminist female artist?
In Talk to me, an essay about Ana’s work, Luísa Soares Oliveira writes :
[…] O véu da noiva project built the bridge between the three women: the mother, who had fulfilled her social destiny, the daughter, who had refused it, and Ruth Rosengarten, for whom the dress acted as a catalyst for the personal memories of her own marriage. (p34) (my emphasis)
In this [O véu da noiva] and in more recent pieces, the history of the artist communes with the history of women, and the two of them with the history of society. (p42) (my emphasis)
Who is, in Ana Vidigal’s oeuvre, that Other, or, more precisely, that Female other with whom she ceaselessly dialogues? […] A ceaseless dialogue runs through her work, which begins with herself and then includes a multiplicity of female characters and models that structured her own identity. (p46)
(my emphasis)
In Serie FACEBOOK, Ana brings some of these female others to life to bear witness to a multiplicity of female subject positions, many of which still tied to stereotypical representations of women escaped paradoxically by way of the very apparatus that created it: the mass media.
The essay you are presently reading, Talking to You. Ana, Isabel, Claire: A Trialogue, is a response to Luísa’s essay, a dialogue with Isabel, and an open letter to Ana. The present conversation piece is maybe more of a series of dialogues than it is a trialogue. Whichever might be the case, it is an ongoing discussion between women of the feminist and post-feminist generations who came of age in the Western World a couple of decades apart from each other. It re-activates past conversations, releases new ones and imagines yet more to come.
* * *
I had told you, Isabel, that I would write about Ana’s work within the realm of Feminism and, more specifically, in comparison with American feminist artists of Ana’s generation. It seemed to me that your work, Ana, might have benefited from being measured against American feminist artists as the Feminist art movement was born in the United States and that that country still seems to be the standard-bearer, if not of feminist art practices, of the discourse on feminist art practices. Recent exhibitions in the United States have addressed Feminism in art including the multi-generational The F-Word exhibition curated by Elizabeth Thomas for the Andy Warhol Museum in Pittsburg in 2006. And since the opening of the Elizabeth A. Sackler Center for Feminist Art at the Brooklyn Museum of Art, the work of historical and contemporary feminist artists is on permanent display in New York. I understand that in Portugal, you both, Isabel and Ana have been a pioneer curator-artist team addressing the theme.
I will not exactly keep my word. It is not that I lied or tried to deceive, Isabel, but I did not yet know what your work, Ana, had in it for me, and the fruits it could bear to nourish my own hungry interests.
I mentioned above the names of some of the American feminists artists whose work reminded me of yours, Ana, and of the common strategies they, and you, use. However, some of the works of yours that I was most drawn to harked back instead to the work of two male American artists, Mike Kelley and Paul McCarthy. Their name came to mind with El amor perjudica seriamente la salud (1997) and Desanimados (2000) both of which feature fluffy toys under various conditions of distress. Seemingly confirming my intuition, the former’s name popped up in Mike Kelly (sic) in Lisboa (2000), a collage of a photograph of a car filled with stuffed animals and of the ticket punishing that car’s non-respect of parking regulation. In El amor perjudica seriamente la salud, a title seemingly lifted from smoking advertisement on cigarette packs, bandaged and otherwise tied up teddy bears, stuffed bunnies, ducks and the likes, fetish objects of childhood, are packaged within a heart-shaped translucent plastic form defined by staples, as if to be safely stored away from the heartaches of adulthood. In Desanimados, bigger stuffed animals arranged pyramidally around a totem-like hanger with a bunny head, are individually wrapped in translucent foil and/or tape, their legs brought up to their chest, arms tied up behind their back, prisoners of a adult’s fantasy, tamed indeed.
Though still visible to the viewer, the stuffed animals in both pieces conceived three years apart of each other, have been neutralized, indeed de-animated, rendered unusable by children and adults alike following an ultimate ritual of appropriation. Hidden from view, one can imagine the secret ritual underwent by stuffed animals at your hands Ana, in a process possibly similar to the one undertaken by Paul McCarthy in the public performance that preceded the making of the piece Props 1972 – 1984 from Inside the Trunks. In it, childhood memorabilia used during over a decade as performance props are permanently locked inside trunks, the content of which is reproduced in individual photographs of the stuffed animals hung on the surrounding walls. It seems to me Ana that you, Mike Kelley and Paul McCarthy come together in a way that trumps gender and makes it hard to apply a feminist argument to this aspect of your work, or at least not more justifiable than not applying it also to Kelley and McCarthy’s work.
Another work of yours, Ana, O véu da noiva, possibly the centerpiece of your career as hinted at by Luisa who stated that “It could almost be said that the dress metaphorically represents the artist’s self” (p34), seemingly the one that carries the strongest feminist agenda in its critique of traditional gender roles brings to mind the work of a feminist-era male artist Hans Haacke. O véu da noiva a monumentally dysfunctional bridal dress with oversize train is formally reminiscent of Haacke’s Wide White Flow (1967-2006) recently installed in 2008 at the Paula Cooper Gallery, New York, and featured later that year in Annual Report. A Year in Exhibitions, the 7th Gwangju Biennial, Gwangju, South Korea. Wide White Flow is a 1200 square foot sheet of white silk sent flying up above the ground by four electric fans in a seeming feat of gravitation. Though seemingly distinct in their inspiration and intent, both works through their monumental intrusion in space engage the viewer in a way that makes passivity untenable, either by triggering the viewer’s incoercible desire to interact with the piece or the opposite reaction of carefully circumventing it. What do you think Isabel? It seems to me that Ana’s choice to contend with such monumental pieces (and with the male-gendered medium of painting in the first place in her earlier days), makes her as much a representative of feminism as it does of institutional critique at large, the former being subsumed under the later.
The span of your work, Ana and, indeed, of your retrospective exhibition of Ana’s work at CAM, Isabel, is my lifetime. I disguised part of my biography when I lumped myself in the category of “woman of the post-feminist generation who came of age in the Western World”. That is partly the case as I was born and grew up in a former Caribbean colony of France, currently a French overseas department. That time span is also that of the independence of Portugal’s former African colonies. As a female curator of color interested in post-colonial issues and who happens to have traveled recently to a few of these former Portuguese colonies, I have been wondering and indeed want to ask you, Ana, about what I see as a void in your work. It is the void created by the silence on Portugal’s colonial context at the time when you were coming of age, a void that is the mirror reflection, at the societal level, of what the absence of your father due to his involvement in the Guinea Bissau wars, was to you at a personal level.
While it might seem strange to question a silence and to probe a void, I see a correlation between the fallacy of domestic happiness in a household whose maintenance is carried out by women alone (Woman’s work is never done, 2002) and the pretense of domestic peace on the national territory while war is raging outside of its metropolitan frontiers (Penélope, 200). In Woman’s work is never done, nine houses, two of which, in the upper right corner and in the lower left corner, bird houses, and one, in the lower right corner, a clock, all encased in Plexiglass cases, some overgrown by woolen female garment seem to allude to the need to secure and at the same time suffocate that domestic space within which women are traditionally kept safe and held hostage. In Penélope, letters sent to Capitão Miliciano Egas de Vidigal Vieira, your father, Ana, I suppose, are stapled together in individual plastic sheets to form a patchwork that covers an adult’s bed. Letters sent by you Ana and your brothers, and your mother as well I imagine, recast as Ulysses’ faithful wife, fill the absence of your father in the parental bed. Unlike in the photomontage work of Martha Rosler previously mentioned, war does not erupt in the living room with the violence of mass media images. Instead, it enters the bedroom by way of intimate letters, absent protagonist of a domestic drama, played in the everyday silence.
To me, however, the absent character in this drama is not so much your father as it is the colonial subject he is fighting. To me, Penélope is the coming together of feminist and post-colonial critiques where the other is no longer a fantasmagorical female other but an ethnic or national other. This seems to be corroborated by the Iranian character of Serie FACEBOOK (15) who is a female, ethnic and national other altogether, the only instance of such character in your work as far as I know.
While the discourse around your work, Ana, is still very much in the making, I have tried to complicate it by bringing you down less traveled interpretative paths, where the feminist content of your work can be seen as being inscribed within a larger agenda of institutional critique and where a post-colonial critique of your work is, contrary to initial appraisal, possible.
To me, Isabel, Ana’s work looks more generational than it does feminist. Generational in the sense that, female gender and feminist agenda aside, it seems to partake enduringly in the spirit of the 1980’s and as such allow for this cross-generational feminist and post-feminist trialogue of ours.
Claire Tancons
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Uma conversa a três: Ana, Isabel, Claire
Estávamos no Verão de 2009. Era a primeira vez que visitava Lisboa, mas a segunda vez que me cruzava com Isabel Carlos. Tinhamos estado juntas na Primavera do mesmo ano, numa conferência em Itália em que ambas participámos. Cheguei a Lisboa em Julho, quando estava a regressar duma viagem a Moçambique, Angola, São Tomé e Cabo Verde – quatro ex-colónias africanas de Portugal. Só não visitei a Guiné-Bissau, que considerei insegura devido à instabilidade política que tem havido nesse país desde a independência. Note-se que foi na Guiné-Bissau que o pai de Ana Vidigal tinha cumprido o serviço militar durante três anos.
Almoço na Gulbenkian: a Isabel fez-me visitar o Centro de Arte Moderna (CAM) que tinha começado a dirigir recentemente. No escritório mostrou-me um livro sobre uma artista cuja retrospectiva estava a preparar. Tratava-se de Ana Vidigal, uma artista importante e uma discreta porta-voz do movimento artístico feminista em Portugal. Examinei atentamente o livro e fiquei impressionada com a amplitude e o alcance da obra, concluindo que se tratava duma artista com grande maturidade, com uma longa vida artística. Tendo eu até agora trabalhado sobretudo com artistas jovens e emergentes, fiquei impressionada com a coerência e a plenitude visíveis no trabalho desta artista.
Foi antes ou depois de a Isabel ter falado nisso que eu comecei a olhar para a obra de Ana Vidigal em associação com o feminismo? Identifiquei uma imagética popular que me era familiar e os instrumentos críticos para a questionar: figuras de cartoons tiradas de livros infantis e sobrepostas em padrões geométricos em alusão ao mundo do modernismo intelectual, peluches envoltos em fita plástica transparente, maltratados por mãos de um adulto depois de terem sofrido a atenção exagerada duma criança ultraprotectora, banda desenhada, revistas femininas, jogos de jornais – tudo cortado e aglomerado em composições de colagens abstractas e decorativas. Lembrei-me de Louise Lawler e de Martha Rosler: a primeira pela sua sensibilidade de recolectora, a segunda pela sua estratégia de fotomontagem, se abstrairmos da imagética da guerra. Também me lembrei de Ghada Amer, se abstrairmos do conteúdo sexual. Senti-me impelida para uma reavaliação da questão do feminismo na arte, ou melhor, do trabalho da Ana através da lente do feminismo.
Ana confirma: Identifico-me com a forma como Martha Rosler «percorre» sentimentos e referências feministas nos mass media. Além disso, penso que existe no meu trabalho uma sexualidade disfarçada por uma ingenuidade aparente, e isso não é algo de acidental, é feito de propósito, é assumido, já que não quero que a exposição da sexualidade seja óbvia.
A Isabel disse-me que seria imperativo eu ver pessoalmente o trabalho da Ana: dada a importância das texturas só ao vivo seria possível apreciá-lo devidamente. Marcaram-me um encontro na Galeria 111. A Isabel deixou-me à porta e levaram-me para o espaço de armazenagem da galeria, onde as obras de Ana estavam conservadas, em condições museológicas, em paineis amovíveis. Mostraram-me uma caixas de acrílico em que estavam guardados despojos preciosos de vidas passadas. Disseram-me que formavam uma série. “A serialidade foi uma estratégia essencial na era da crítica institucional,” pensei para mim própria. Outros trabalhos foram colocados no chão diante de mim. Penso que se tratava das obras apresentadas na recente Bienal de Sharjah, que foi comissariada pela Isabel. Há uma avestruz que parece misteriosa, com o pescoço cortado e colocada num puzzle visual.
Durante essa curta estadia em Lisboa não cheguei a encontrar-me com a Ana. Cheguei a ter planeada uma outra visita, mas teve de ser cancelada. Acabei por encontrar a Ana alguns meses mais tarde: uma mulher iraniana, com véu, Heidi, Anita, e um elenco improvável de cantoras de telenovela, apresentadoras de anúncios comerciais e estrelas menores da TV. Todas são alter-egos em linha pertencentes ao seu recente projecto, uma série no FACEBOOK, “Semiotics Of the Living Room”, um remake, na era da Internet, da Semiotics of the Kitchen, de Martha Rosler. Eu estava, nessa altura nas Caraíbas, na ilha situada mais a sul. Ana, presumivelmente, estaria em Lisboa. Eu estava a contactar a Ana com alguns dias de atraso (os vídeos tinham-me sido enviados em fins de Fevereiro de 2010), enquanto ia pensando qual seria exactamente o tipo e o nível do contacto a estabelecer. Estaria eu a conectar-me com Ana enquanto mulher ou enquanto historiadora de arte; ou talvez enquanto historiadora de arte e mulher; ou ainda enquanto mulher historiadora de arte a escrever sobre uma mulher artista; ou uma mulher historiadora de arte da era pós-feminista que, a pedido duma mulher curadora presumivelmente feminista, escreve sobre uma mulher artista feminista?
Em Talk to me, um ensaio de Luísa Soares Oliveira sobre o trabalho de Ana Vidigal, lê-se :
«[…] O projecto “O véu da noiva” estabelecia assim uma ponte entre as três mulheres: a mãe, que cumprira o seu destino social, a filha, que tinha o recusara, e Ruth Rosengarten, para quem o vestido funcionava como catalisador de memórias pessoais do seu próprio seu casamento.
É por isso que, nesta como noutras obras mais recentes, a história da artista convive com a história da mulher, e ambas com a história da sociedade.
Quem é, na obra de Ana Vidigal, esse Outro, ou melhor, essa Outra com quem fa constantemente? (…) Há um diálogo incessante na sua obra, que se vai construindo primeiro consigo, depois com com a multiplicidade de figuras femininas de modelos vários que estruturam a sua própria identidade.»
(destaques meus em itálico)
Na série FACEBOOK, Ana dá vida a esses outros femininos para dar testemunho duma multiplicidade de situações de sujeição feminina, muitas das quais ainda ligadas a representaçóes estereotipadas de mulheres e criticicadas, paradoxalmente, através dos próprios meios que criaram essas representações: os mass media.
Este ensaio que estão agora a ler, Uma conversa a três: Ana, Isabel, Claire, é uma replica ao ensaio da Luísa, um diálogo com a Isabel, uma carta aberta à Ana. Este texto, mais do que uma conversa a três, é talvez mais uma série de diálogos. Seja como for, é uma discussão em curso entre mulheres das gerações feministas e pós-feministas que foram aparecendo no mundo ocidental ao longo de várias décadas. Uma discussão que reanima conversas do passado, revela algumas novas e imagina ainda mais as que virão.
* * *
Tinha-te dito, Isabel, que iria escrever sobre a obra da Ana no contexto do feminismo e, mais especificamente, em comparação com artistas feministas americanas da geração da Ana. Pareceu-me, Ana, que a tua obra deveria ser analisada em confronto com a de artistas feministas americanas. O movimento artístico feminista teve origem nos Estados Unidos, um país que parece continuar a ser o grande defensor, pelo menos, do discurso sobre a arte feminista, mesmo que já não tanto das práticas artísticas feministas. Algumas exposições recentes nos Estados Unidos foram sobre o feminismo na arte, nomeadamente a exposição multigeracional The F-Word, com curadoria de Elizabeth Thomas, para o Museu Andy Warhol, em Pittsburg em 2006. E, desde que foi inaugurado o Elizabeth A. Sackler Center for Feminist Art, no Museu de Arte de Brooklyn, as obras de artistas feministas históricas e contemporâneas têm ume espaço de exposição permanente em Nova Iorque.
Já me referi, Ana, às artistas feministas americanas cujas obras me lembraram a tua e mencionei as estratégias comuns que todas utilizam. No entanto, algumas das tuas obras que mais chamaram a minha atenção remeteram-me sobretudo para dois artistas americanos masculinos, Mike Kelley e Paul McCarthy. É o caso de El amor perjudica seriamente la salud (1997) e de Desanimados (2000), obras em que figuram vários bonecos de peluche manietados de diversas formas. Numa confirmação aparente da minha intuição, estes nomes de artistas aparecem em Mike Kelly (sic), Lisboa (2000), uma colagem fotográfica que contém um carro cheio de animais em peluche e uma multa que pune a falta de respeito do proprietário da viatura pela regulamentação sobre estacionamento. Em El amor perjudica seriamente la salud, um título que aparentemente remete para os avisos nos maços de cigarros, há vários ursos, coelhinhos, patos e outros animais de peluche, objectos-fetiche da infância, colados e atados, inseridos numa forma de plástico transparente em forma de coração, como se estivessem guardados seguramente, afastados das agruras da fase adulta. Em Desanimados, animais de peluche de maiores dimensões estão dispostos em pirâmide em torno de um cabide com cabeça de coelho, como se fosse um totem. Os animais estão embrulhados individualmente em película e/ou fita transparente, com as pernas colocadas no peito e os braços atados atrás das costas, prisoneiros da fantasia do adulto, de facto domesticados.
Embora ainda visíveis para o espectador, os animais de peluche em ambas as peças, concebidas com três anos de intervalo, foram neutralizados, de facto des-animados, tornados inutilizáveis, seja por crianças seja por adultos, através de um autêntico ritual de apropriação. Longe da nossa vista, podemos imaginar o ritual secreto sofrido pelos peluches às tuas mãos, Ana, num processo possivelmente idêntico ao utilizado por Paul McCarthy na performance que precedeu a elaboração da peça Props 1972 – 1984 from Inside the Trunks. Nesta obra, vários brinquedos de infância utilizados ao longo duma década como acessórios de performance ficam trancados permanentemente em malas, sendo esse conteúdo reproduzido em fotografias de cada peluche penduradas nas paredes circundantes. Parece-me, Ana, que tu, o Mike Kelley e o Paul McCarthy estão juntos nisto duma forma que ultrapassa as questões de género e dificulta a aplicação de um argumentário feminista a este aspecto do teu trabalho, ou, pelo menos, pode-se dizer que seria tão injustificável como aplicá-lo à obra de Kelley ou de McCarthy.
No que diz respeito à manipulação dos animais de peluche e à identificação com o trabalho desenvolvido por Mike Kelley e por Paul McCarthy, assumo que, no meu caso, se trata duma atitude de domesticação, não só da forma, mas também do conteúdo que representam. Posso também identificar um prazer de os domesticar através de práticas de “bondage”. Perversidade feminina? Punir os homens? O meu desprezo absoluto pela maternidade? No entanto, tudo continua a estar disfarçado com uma falsa ingenuidade, pois dá-me prazer sacudir o espectador.
Um outra obra tua, Ana, O véu da noiva, é provavelmente a peça central da tua carreira, como foi indicado pela Luísa ao afirmar que “quase que poderíamos dizer que o vestido representa metaforicamente o “eu” da artista.” (p. 34). Aparentemente, esta obra inspira-se numa agenda marcadamente feminista ao criticar os papéis tradicionais em termos de género. Mas também evoca a obra de outro artista masculino da era do feminismo, Hans Haacke. O véu da noiva, um vestido monumentalmente disfuncional com véu sobredimensionado, é, do ponto de vista formal, reminiscente da obra Wide White Flow, de Haacke’s (1967-2006), que foi instalada em 2008 na Galeria the Paula Cooper, em Nova Iorque, e apresentada no mesmo ano em Annual Report - A Year in Exhibitions, na 7ª Bienal de Gwangju, na Coreia do Sul. Wide White Flow é um lençol de seda branca com 1200 pés quadrados (cerca de 330 metros quadrados), esvoaçando por cima de quatro ventoinhas eléctricas num aparente feito de levitação.
É verdade que [o meu trabalho] se identifica como o de Hans Haacke, mas «O Véu da Noiva » é diferente porque quis que a obra fosse completamente estática. Quase como uma estátua num cimetério, e penso que essa não era a intenção de Hans Haacke. Um tipo de mausoléu. O meu depósito. O confronto entre a religião católica (a minha mãe), a judia (Ruth) e o meu ateismo. Uma espécie de xeque-mate, suavizado pelo vestido de cetim.
Embora aparentemente distintas, tanto em termos de inspiração como de intenção, ambas as obras, através da sua intrusão monumental no espaço, confrontam o espectador de modo a tornar insuportável a sua passividade. Ou activam o desejo incoercível de interagir com a peça, ou a reacção oposta de tentar contorná-la cuidadosamente. O que pensas, Isabel? Parece-me que a opção da Ana de se bater com peças de tal monumentalidade (tal como com a pintura, esse meio de expressão tão marcadamente do género masculino, numa fase inicial da sua carreira), e de “penetrar” no território de Hans Haacke, torna-a certamente uma representante, por lado, da abordagem feminista da produção de arte, mas, por outro, da crítica institucional em sentido mais lato, sendo que a primeira é, de facto, um caso particular da segunda.
* * *
O tempo da tua obra, Ana, e desta exposição retrospectiva no CAM, coincide com o tempo da minha vida. Eu disfarcei uma parte da minha biografia quando me descrevi sumariamente como “mulher duma geração pós-feminista característica do mundo ocidental.” Em parte é assim, já que nasci e cresci numa ex-colónia francesa das Caraíbas, actualmento um departamento ultramarino francês. Este tempo foi também o da independência das ex-colónias africanas de Portugal. Como curadora e mulher de cor interessada em questões pós-coloniais, que casualmente visitou recentemente algumas das ex-colónias portuguesas, tenho andado a pensar e, de facto, com vontade de indagar, Ana, algo que vejo como um vazio na tua obra. Trata-se, especificamente, do teu silêncio sobre o contexto colonial de Portugal durante a tua juventude. Parece-me ser uma reflexão-espelho, no plano societal, do que significou para ti, no plano pessoal, a ausência do teu pai devido à guerra na Guiné-Bissau.
O vazio de que falas quanto à abordagem da guerra colonial resume-se numa só palavra: vergonha. Explico-me. Pertenço a uma geração e fui educada num meio social em que um membro da família participante na guerra colonial era considerado [como] um herói. E, de repente, tudo isso ruiu com o 25 de Abril de 1974 (data do golpe de Estado militar que destruiu a ditadura em Portugal e que começou a descolonização). Consequentemente, a única forma de ultrapassar esta contradição é o silêncio. Ou seja, «passar por essa história» com discrição. […]
O facto de não falar do outro lado da guerra pode, realmente, representar uma posição pós-colonialista que ainda não terá sido completamente digerida. No entanto, se toco nesse tema da guerra colonial, mesmo de forma disfarçada, isso não significa que eu não tenha consciência da violência exercida sobre os povos africanos. E, mais uma vez, estou a analisar o papel submisso das mulheres e das filhas desses homens que esperavam pacificamente que o regime lhes causasse a morte. [A quem te referes [lhes] neste trecho? A ambiguidade estrutural da tua frase, Ana, indicia uma ambiguidade de sentido muito interessante; de facto, é um lapso revelador da tua associação da colonização dos povos africanos pelos homens com a colonização das mulheres e das filhas pelos respectivos maridos e pais].
Embora possa parecer estranho questionar um silêncio e analisar um vazio, identifico uma correlação entre a falácia da felicidade doméstica num lar cuja manutenção só depende das mulheres (Woman’s Work is Never Done, 2002), e a fantasia da paz doméstica no território nacional enquanto a guerra prossegue fora das fronteiras metropolitanas (Penélope, 2000). Em Woman’s Work is Never Done, há nove casas. Duas delas, no canto superior direito e no canto inferior esquerdo são casas de pássaros. Outra, no canto inferior direito, é um relógio. Estas estão contidas em caixas de acrílico. Algumas das casas estão cobertas por roupa de lã feminina. Parecem aludir à necessidade de segurança e, simultaneamente, ilustrar a sensação sufocante daquele espaço doméstico em que, tradicionalmente, as mulheres são mantidas seguras e, paradoxalmente, mantidas reféns. Em Penélope, várias cartas enviadas ao Capitão Miliciano Egas de Vidigal Vieira (o teu pai, Ana, suponho) estão agrafadas em folhas de plástico formando uma manta de patchwork que cobre uma cama de adulto. Cartas enviadas por ti e pelos teus irmãos, e pela tua mãe também, imagino, referenciada aqui como a fiel esposa de Ulisses, preenchem a ausência do teu pai no leito parental. Diferentemente da fotomontagem na obra de Martha Rosler que mencionei anteriormente, a guerra não irrompe na sala com a violência das imagens dos mass media. Em vez disso, entra no quarto de dormir através de carta intimas e de um protagonista ausente de um teatro doméstico representado no silêncio quotidiano.
Para mim, contudo, a personagem ausente neste teatro não é tanto o teu pai, mas antes o sujeito colonial com quem ele está a combater. Para mim, Penélope é o encontro das críticas feministas e pós-coloniais em que o Outro já não é uma fantasmagórica mulher-outra, mas um Outro étnico ou nacional. Isto parece-me ser confirmado pela personagem iraniana na série FACEBOOK (15), que é completamente um mulher-outra, o único exemplo duma tal personagem na tua obra, tanto quanto sei.
Embora o discurso acerca da tua obra, Ana, ainda esteja em elaboração, o que tentei foi complicá-lo levando-o para alguns caminhos interpretativos menos percorridos: o conteúdo feminista do teu trabalho pode ser inscrito no âmbito mais vasto da crítica institucional em que se torna possível a crítica pós-colonial do teu trabalho, ao contrário do que havia pensado inicialmente.
Para mim, Isabel, a obra da Ana, parece-me mais geracional do que feminista. Geracional no sentido em que, para além das perspectivas do género feminino e do feminismo, parece-me integrada no espirito dos anos 80 e, consequentemente, proporcionar esta nossa conversa a três, que é intergeracionalmente feminista e pós-feminista.
* * *
Embora eu tenha chamado a isto uma conversa a três, não se trata bem disso. Se assim fosse, a Ana, a Isabel e eu própria estariamos a falar umas com as outras, e não como acontece aqui, uma a falar para outra. A Ana, a Isabel e eu nunca nos sentámos numa sala a conversar, nem sequer tentámos uma conference call. O tratamento editorial do texto revela a falácia aparente da sua premissa e revela possivelmente a sua própria natureza. Este não é um a diálogo a três, mas antes uma série de monólogos curatoriais que se destinam a evitar a armadilha da narrativa magistral produzida por uma voz autoral única e a pretensão da reprodução verosímil duma entrevista.
Bonjour Claire, Voilà ma participation au trialogue, foi o que a Ana me escreveu num e-mail de reacção à sua primeira leitura deste texto. Em anexo vinha uma carta de uma página que tratava alguns pontos que eu tinha introduzido no primeiro esboço deste texto. As frases em itálico nesta versão final do texto, fazendo eco aos títulos em itálico das suas obras, são excertos dessa carta, a voz da Ana na prática epistolar, que é, historicamente, uma voz feminina. O facto de a Ana se ter dirigido a mim em francês, a minha língua de origem, foi um choque. Lingua de origem que se diz em francês langue maternelle (lingual materna em português); e o francês é, de facto, a língua da minha mãe. A parte chocante foi a mestria da Ana com a lingua francesa, visível em muitas das suas palavras, como por exemplo na obra La métaphore pour jeunes filles (2001), em que confirma, pelas suas próprias palavras, l’éducation bourgeoise que j’ai subie (a educação burguesa a que fui submetida). O choque foi causado porque no contexto duma conversa intensa sobre as questões pós-coloniais na obra da Ana apercebi-me do facto de eu ter estado “exilada” durante décadas da minha lingua materna e da minha terra natal, França, cujo passado colonial não é menos perturbante que o de Portugal. O silêncio da Ana sobre as guerras coloniais de Portugal é o equivalente do meu próprio “exílio” em relação à lingua francesa, uma vez que não a utilizo para falar do passado colonial da França.
A Isabel foi quem reagiu primeiro, respondendo, em inglês, ao meu primeiro texto. Ainda tenho alguma incerteza quanto à forma como inserir a sua voz curatorial no nosso texto. Coloco-me questões quanto à colonização da obra da artista pela curadora (a Isabel, neste caso), ou pela historiadora de arte (eu própria), e quanto à possibilidade de haver estratégias curatoriais femininas – à semelhança das teorias da feminidade de Hélène Cixous.
Transcrevo agora tal e qual aquilo que a Isabel escreveu:
«Concordo inteiramente contigo [Claire] que “a obra da Ana parece mais geracional do que feminista” e que a relação com Paul McCarthy e Mike Kelley faz sentido; mas, o que é interessante para mim é que, formalmente e em termos de estratégia visual, podemos estabelecer essa relação entre as obras destes artistas, mas se olharmos mais atentamente para elas, sem indicações, poderemos facilmente adivinhar quem é homem e quem é mulher, o que me parece um aspecto enriquecedor.»
Gostaria de discordar, Isabel, particularmente no que diz respeiro à comparação com Mike Kelley, que me parece ser bastante neutro em termos de género. Desanimados, por exemplo, com a sua figura central de totem erecto, até me parece uma obra muito fálica. Como acontece com todas as obras abstractas e geométricas, em que me parece difícil uma atribuição em termos de género. Vejamos, por exemplo, algumas das minhas preferidas de finais dos anos 90: Super Pop (1999), You are so hard to wake, e Or is sleep coming over you again (ambas de 1998); Nada a dizer, Nada a acrescentar, In-sónia (Nada a fazer)(todas de 1999). Só olhando para elas, não conseguiria adivinhar o sexo do autor ou da autora, nem com qual dos dois géneros essa pessoa se identificaria. Teria, pelo menos, de conhecer os títulos das obras. Tal como são os títulos que me permitem organizá-las em duos ou trios, é também pelos títulos que consigo ouvir uma voz feminina. You are so hard to wake e Or is sleep coming over you again parecem fragmentos de um discurso amoroso, enquanto Nada a dizer, Nada a acrescentar e In-sónia (Nada a fazer) parecem segmentos de um monólogo interior. No entanto, pelo menos no primeiro caso, ignoro se os títulos traduzem a Ana a falar ou alguém a falar à Ana. Seja qual for o caso, nestas obras, a voz feminina da Ana emerge não tanto através do seu vocabulário formal, mas antes através da língua. Segundo Lacan, é a partir da figura do pai que cada um constrói o seu género em concordância ou em oposição face ao seu sexo e aos seus pais. Por isso, o feminino em Desanimados pode também estar no título: o falo tornado inanimado através da ironia feminina.
Penso que é somente através das obras figurativas, e mesmo assim não isoladas, mas significativamente — explicarei mais tarde — como parte de um corpo de obras, que a identidade da Ana como mulher é revelada, ou melhor, se constrói. Por exemplo, She (1999), que parece ser formal e cronologicamente posterior às obras acima mencionadas. O olhar do espectador percorre diagonalmente a tela para se ir deparar no canto superior direito com a actriz francesa Catherine Deneuve, um ícone feminino dos anos 70. Ao se recentrar o olhar para o meio do quadro, que está dividido em dois, é-se levado a olhar para o lado esquerdo para um copo de designer, e para o direito para uma cadeira Jacobsen. No lado esquerdo há círculos negros que, mais do que taparem a visão de qualquer motivo, sublinham a fragmentação da imagem. No lado direito, há tinta negra aplicada em toda a superfície, com excepção dos círculos transparentes que parecem entrecortá-la repetidamentes, num jogo de negativo/positivo, que acaba por dar unidade à obra. Nem esta estratégia estética específica, nem a escolha das três imagens, supostamente extraídas de revistas femininas, me permite identificar com certeza o/a autor(a). Se a Ana fosse um homem, poderia talvez ter optado por representar um símbolo sexual como Brigitte Bardot, em vez da figura mais fria e intelectual de Deneuve. Mas isso será pouco mais do que uma questão de gosto. A verdade é que Deneuve encaixa perfeitamente no papel da grande bourgeoise, e ilustra assim tanto uma admiração como uma rejeição dos valores burgueses em que a Ana foi educada.
Como se chama a pequena figura branca de cartoon, delineada a negro, que aparece repetidamente nas obras da Ana no ano de 2002? Com as ancas chegadas para a frente, mãos nelas postas e um sorriso de sabichona (Mademoiselle-je-sais-tout), contesta a atitude matronal. Em Blind date está de olhos vendados, em Anos 40…os meus (2003) está transformada num labirinto e em duas obras redondas de 2002, sem título, está transfigurada em figuras negras ou diabólicas. Estes gestos essencialmente de negação, transgressores da ortodoxia feminina, são menos reveladores da identidade feminina da autora do que a mera repetição da própria figura feminina. Se os materiais da obra da Ana devem ser referenciados à materialidade do seu corpo, como sugerido pela Luísa quando fala sobre O véu da noiva, então é verdadeiramente pelo corpo da sua obra que emerge a sua voz feminina. À pequena figura de cartoon é negado o discurso mas, através da forma estereotipada da linguagem publicitária aqui tomada de empréstimo, isso só contribui para a objectificar. “Bouche bouche” está escrito na sua boca em Anos 40…os meus”; no seu vestido, sobre uma superfície totalmente branca, sem nenhumas outras marcas significantes está escrito “Search!” , como uma alusão ao mistério do corpo feminino. Mas a Ana fala, de facto, por ela própria utiliza a escrita, mesmo que dissimule a forma feminina que a sua escrita possa ter, tomando de empréstimo o estilo de um diálogo de guião, escrevendo em A minha vergonha é sorridente (2001): “O meu corpo tem três cicatrizes. O meu coração tem mais”. A pequena figura de cartoon não aparece neste quadro. Em vez dela, aparece uma figura mais misteriosa, reminiscente de um boneco de neve, que faz guarda nos quatro cantos do quadro e alude a uma construção de identidade mais complexa do que se fosse meramente negativa ou oposicional.
Assim, não por culpa da Isabel, acabei por levar-nos para os terrenos arriscados do debate feminista - quando relacionei a obra da Ana com a de outras artistas americanas assumidamente feministas - e duma guerre des sexes - ao compará-la com a obra de artistas masculinos, também dos Estados Unidos. A Ana reconheceu essas relações, mas nenhuma delas é suficiente para explicar cabalmente a sua obra, nem para subestimar o feminismo ou o feminino nela presente. O que esta conversa pode trazer - e isso confirma as observações da Luísa anteriormente mencionadas acerca da pluralidade de vozes femininas na obra da Ana - é construir uma escrita feminina, intertextualmente, através da colagem, da contradição, da contestação e da conivência - na melhor tradição feminista. Talvez não tenha havido outras possibilidades, ou oportunidades, para sublinhar as narrativas feministas e pós-coloniais na obra da Ana, como é feito neste texto com a participação activa de vozes e/ou representantes da história da libertação das mulheres, bem como das minorias raciais e sexuais.
Porque a obra da Ana não é só geracional; é histórica.
Claire Tacons
(tradução Miguel RM)
12.8.10
11.8.10
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