27.3.12

Art me up | (um texto de Eugénia Vasconcellos)

LOCK ME SAFE-SET ME FREE

Da Casa dos Segre­dos, de Ana Vidi­gal, já li que era uma escul­tura, uma ins­ta­la­ção e ambas. Deixo isso para quem disse. Mas a afir­ma­ção da cons­tru­ção atra­vés da des­cons­tru­ção de um espaço pelo rea­li­nha­mento de caci­fos for­ra­dos, acima, de espe­lho, da mani­pu­la­ção da luz e da cir­cu­la­ção, não chega para des­cre­ver o que encon­tra­mos quando entra­mos no átrio do IST. A ser um con­ceito tan­gí­vel, da ordem do da escul­tura, do da ins­ta­la­ção, a Casa dos Segre­dos é um verbo no gerún­dio, o único tempo que serve à fénix, ao que prin­ci­pia e acaba para prin­ci­piar, ao con­tí­nuo humano – ao labirinto.

A Casa dos Segre­dos é a nar­ra­ção de um pro­cesso, nar­ra­ção feita com os recur­sos dis­po­ní­veis no local — uma eco­no­mia razoá­vel, sen­sata e, pre­do­mi­nan­te­mente, domés­tica. Nada que seja inco­mum nos tra­ba­lhos de Ana Vidi­gal. Ou melhor, é um traço dis­tin­tivo neles — não há equí­vo­cos nesta trans­for­ma­ção que actua fora como den­tro: de um casaco se faz uma saia; das sobras de uma refei­ção outra; de mil livros lidos se escreve um iné­dito; de uma foto­no­vela faz-se uma situ­a­ção numa tela. Da casa que se atra­vessa, faz-se o mundo por onde se cami­nha: labi­rinto é o pro­cesso de trans­for­ma­ção de uma coisa num outro si mesmo, um cen­tro de ser que se expande

Tal­vez este seja o mais tra­di­ci­o­nal­mente femi­nino tra­ba­lho de Ana Vidi­gal – o que não deixa de ser inte­res­sante como recor­rên­cia nos ter­mos inter­pre­ta­ti­vos do lugar da mulher, do con­flito e da paci­fi­ca­ção des­sas posi­ções. Tal­vez por isso esteja osten­si­va­mente no átrio de um mundo tra­di­ci­o­nal­mente mas­cu­lino, o IST. Logo, e para­do­xal­mente, é femi­nista. Não por con­tes­ta­ção, por con­fir­ma­ção. Esta­mos aqui. Outro traço dis­tin­tivo: a pre­sença da dua­li­dade, feminino-masculino. Adi­ante mais. E a inter­ven­ção, deve­ria dizer a femi­ni­za­ção do espaço, radi­cal: a Casa dos Segre­dos é, antes de ser outra coisa, uma caixa de cai­xas, a maior cuja tampa é a cla­ra­bóia, luz de fora fil­trada para den­tro, como no tempo da infân­cia de Ana Vidi­gal, onde se fez pes­soa, quando era atra­vés do homem fora que o mundo che­gava à mulher den­tro, casa-caixa-contentor de si e con­ti­nente de outros, um mundo e outro mundo. As pare­des ergui­das tais mura­lha, caixas-cacifos, modo ver­ti­cal de actuar, assump­ção do modo mas­cu­lino pelo femi­nino, ir ao mundo fora, levando o mundo de den­tro. Um mundo e outro mundo num só mundo, uma das pare­des caiu, den­tro prolonga-se para fora, e fora cresce para den­tro, o con­ti­nente somos eu e tu, à vez. Den­tro dela, a casa, nome­ada na parede pelo lado externo, qual villa onde se habite: Casa dos Segre­dos. E este é o seu maior segredo, à vista de todos, o segredo do movi­mento dos tem­pos no tempo: este mundo mas­cu­lino já é femi­nino, esta­mos aqui, diz a voz de uma mulher. O segredo é possível?

A Casa dos Segre­dos terá sido um rea­lity show à seme­lhança de um Big Brother — o jogo de sedu­ção de Godard quando pisca o olho ao público. A parede caiu. Da coin­ci­dên­cia de pro­grama e inter­ven­ção, entra-se na evi­dên­cia: o espaço pri­vado no espaço público. As tais mais dua­li­da­des acima pro­me­ti­das. Ou se pre­fe­rir­mos, o espaço do voyeur no lugar do exi­bi­ci­o­nista: faço para que vejas, mimé­tica prous­ti­ana, vejo para que faças. Outro traço dis­tin­tivo que aqui recorre: humor, pro­vo­ca­ção, mise-en-scéne, espe­lho de nós, cari­ca­tura ence­nada. Mas existe ainda a pri­va­ci­dade? O lugar íntimo no tempo do chip, do gps, do FB, quando ser é comu­ni­car que se é? A parede caiu. E, não de some­nos, há tam­bém o lugar do objecto e do atri­buto, sin­to­mas: sinais iden­ti­tá­rios do ser e do fazer, pro­fis­são, crença, hobby, casado, sol­teiro, rico, triste, apli­cado, soli­tá­rio, popu­lar, fechado a segredo cade­ado, a segredo soli­tá­rio por entre a gente, exposto para ser visto, e exposto até à invi­si­bi­li­dade: lock me safe-set me free.

Mais outro traço: a repe­ti­ção e a super-abundância, no caso a da mesma ideia em for­mas iguais e dife­ren­tes para mais com­ple­ta­mente a explo­rar. Uma caixa den­tro de outra caixa den­tro de outra caixa. Cacifo, cacifo, cacifo, cacifo, cacifo. Acima e abaixo caci­fos, cai­xas sobre cai­xas. Luz de cla­ra­bóia sobre os espe­lhos e devol­vida para fora, de fora para den­tro, de den­tro para fora, outra vez, de outra maneira. Esta­mos aqui.

E, final­mente: buraco no tronco da árvore de Alice, caindo, entrando no labi­rinto, se tran­sita do público-privado, aberto-fechado, para o eu persona-eu comigo, e um fio inteiro para me encon­tra­res, a mim Ari­adne, não à saída, não ao outro ao meu lado, igual a mim pelo lado de fora, a mim, indi­ví­duo único, para me encon­trar a mim mesmo, e para ser, indi­vi­du­a­ção, ser em cami­nho, cami­nhante — em rela­ção, em situ­a­ção, no tempo. Outro traço dis­tin­tivo: o diá­logo, a dinâ­mica pes­so­a­lís­sima de um pro­cesso cri­a­tivo, não a dinâ­mica para uma resolução.

É pelos tra­ços dis­tin­ti­vos, que bom, por­que com­põem uma espe­cí­fica lin­gua­gem assi­nada, que pode­mos dizer: é da Ana Vidigal.

* soli­tá­rio por entre a gente…, de Camões in O AMOR É FOGO QUE ARDE SEM SE VER